Um casal se separa e, em meio ao turbilhão de acontecimentos inerentes a uma situação como esta, um dos pais procura desqualificar a imagem do outro perante os filhos. Essa cena é mais comum do que se imagina, mas não deveria pois as consequências causadas às crianças e aos adolescentes que ficam no meio desse cabo de guerra são seríssimas e têm um nome: síndrome da alienação parental.

Nesta matéria especial – a última da série sobre Direito de Família – conheça melhor o assunto. Confira, ainda, ao final dos textos, videoaula sobre o tema, ministrada pelo jurista Eduardo de Oliveira Leite, pós-doutor em Direito de Família e autor do livro “Alienação Parental – Do mito à realidade”. A videoaula foi gravada com apoio do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (Ceaf) e da Fundação Escola do Ministério Público (Fempar).

 

 

Alienação ParentalDefinição – Em vigor desde 2010 no Brasil, a Lei 12.318 descreve a alienação parental como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores (ou pelos avós ou por quem tenha a criança sob sua autoridade), para que ela repudie o pai ou a mãe, causando prejuízo no estabelecimento ou manutenção dos vínculos familiares. Geralmente, isso ocorre quando há um divórcio mal resolvido, ainda com mágoas e hostilidade, e os pais utilizam os filhos nessa disputa.
Eduardo Leite, jurista pós-doutor em Direito de Família“Temos, então, três sujeitos que atuam na alienação parental: o alienador, que pode ser o pai ou a mãe; o alienado, que é quem exerce esporadicamente a visitação, e a criança (ou adolescente). Os efeitos dramáticos da alienação parental recaem sobre todos esses atores, mas com maior intensidade sobre a criança (ou adolescente), porque ela não tem ideia do que está acontecendo”, explica o professor Eduardo de Oliveira Leite, pós-doutor em Direito de Família.
Formas de alienação – A legislação destaca sete exemplos de alienação. O primeiro deles é o mais comum e mais utilizado: a desqualificação da conduta do genitor. São frases como: “Seu pai atrasou o pagamento do colégio”, ou “Te liguei ontem e sua mãe não deixou eu falar com você” e, ainda, “Seu pai não gosta de você” ou “Sua mãe não se preocupa com você”, que, repetidas à exaustão, acabam sendo interiorizadas pela criança. Dificultar o exercício da autoridade parental, o contato da criança com o genitor ou o exercício do direito de convivência familiar também são formas utilizadas. Ocorrem, por exemplo, quando um dos genitores não transmite ao filho o recado deixado pelo outro, quando e-mails e telefonemas são interceptados, quando presentes deixados para a criança não são entregues, quando são criados empecilhos para a visitação, quando o pai ou a mãe proíbe que o filho use uma peça de roupa ou um objeto dado pelo outro genitor, entre outras situações.

Há, ainda, pais que omitem do ex-parceiro informações importantes sobre a criança ou o adolescente, inclusive escolares ou médicas. Por exemplo, a mãe não avisa que será realizada festa de dia dos pais na escola e, quando o pai não comparece, ela diz que ele não se importa com o filho; ou o pai não conta que o filho sofreu um pequeno acidente e foi para o hospital e, quando a criança questiona a ausência da mãe, ele diz que ela não se preocupa com o filho. Outra forma citada de alienação parental é a mudança de domicílio para local distante, sem justificativa, com o objetivo de dificultar a convivência da criança com o outro genitor e seus familiares, como avós.
Luci Pfeiffer, médica pediatra e psicanalista de crianças e adolescentesAs situações mais graves, também descritas na legislação vigente, dizem respeito à apresentação de falsas denúncias contra o genitor, seja de violência, negligência ou de abuso sexual, o que pode provocar a suspensão do convívio da criança com o pai ou com a mãe. “É uma violência psíquica, uma violência psicológica imensa. Quando existe uma denúncia grave, afastar a criança é o primeiro passo e tem sua justificativa na proteção, que tem que vir em primeiro lugar. Mas nós teríamos que ter primeiro um diagnóstico: nós vamos proteger de quem?”, questiona a médica pediatra e psicanalista de crianças e adolescentes Luci Yara Pfeiffer, responsável pelo Programa HC Dedica – programa de atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência grave do Hospital de Clínicas.

Investigação – Casos de alienação parental são observados com frequência nas Varas de Família, principalmente nos processos de divórcio em que a guarda dos filhos é discutida. Essas disputas judicias já são, por si só, tumultuadas e complexas, e o efeito emocional causado pela dissolução familiar é o mais nocivo e duradouro. “São os piores processos que a gente tem visto aqui”, ressalta a psicóloga Lígia Aparecida Cemim, do Núcleo Integrado de Apoio Psicossocial das Varas de Família do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

A observação de comportamentos de todos os envolvidos em um processo de ruptura familiar (pais, avós ou outros responsáveis, e dos filhos) pode evidenciar a ocorrência da prática. E, constatado qualquer sinal de alienação, é necessária uma atenção especial dos atores de Justiça: a lei prevê, inclusive, que, declarado qualquer indício, o processo deverá ter tramitação prioritária para que haja preservação da integridade psicológica da criança e do adolescente. “Toda a equipe que atua nesses casos precisa estar atenta aos sinais”, diz Lígia.
Alienação ParentalImportância de ouvir – Nesse sentido, destaca-se que, tão importante quanto a celeridade na resolução desses casos, é ouvir todos os envolvidos: a criança alvo de alienação, os pais (tanto alienador quanto alienado), os avós, enfim, quem for possível. “Se eu tenho uma suspeita de alienação, de abuso ou violência, se eu tenho uma queixa de um dos lados, nunca só um lado pode ser escutado. Os dois devem ser ouvidos, o histórico desse casal e de cada envolvido tem que ser revisto, e não apenas ter como base uma denúncia de uma criança, ou a repetição de uma história”, ressalta a médica pediatra Luci Yara Pfeiffer. Ela salienta, também, a importância de que as crianças sejam escutadas em momentos distintos do processo, e não uma única vez. “A criança sempre deveria ser ouvida, mas não para dizer com quem ela prefere ficar. O ideal é que se tenha mais de um profissional ouvindo, de áreas diferentes, e várias vezes. Um dos grandes erros cometidos hoje é aplicar questionários prontos com as crianças, porque não existe instrumento mágico de questionário que possa dar esse diagnóstico”, explica.

Além da tríade pai, mãe e criança, Luci destaca a necessidade de que outras pessoas próximas também falem durante o processo. “Os avós, por exemplo, também precisam ser avaliados. Às vezes você escuta a mesma fala da mãe ou do pai nos avós e descobre que a alienação conta com esse apoio até mesmo para que seja satisfeito um desejo de posse desses avós sobre os netos. Porque se o pai fica sozinho, ou a mãe fica sozinha com a criança, vão voltar a depender dos avós, vão pedir ajuda. A alienação não começa às vezes no pai ou na mãe, é uma estrutura que pode vir de gerações”, completa.

Danos para a criança
– São os pais ou responsáveis que apresentam o mundo aos filhos, que formam a estrutura para que a criança se desenvolva. Em uma relação conflituosa e agressiva, essa imagem paterna ou materna pode ser destruída, prejudicando a referência de homem e mulher que a criança vai levar para a vida.

Alienação ParentalFoi em 1985 que o psiquiatra americano Richard Gardner definiu como Síndrome de Alienação Parental (SAP) o distúrbio em que as crianças são programadas por um dos genitores a difamar reiteradamente o outro genitor. Tal comportamento surge quase que exclusivamente no contexto das disputas de custódia das crianças. Segundo o advogado Eduardo de Oliveira Leite, essa lavagem cerebral é feita de um cônjuge para outro quando não há a elaboração do luto do divórcio, “para manter aceso o vínculo entre ambos, pois, se tivessem elaborado o luto, dariam liberdade ao outro de continuar seguindo sua vida”, explica ele. “Enquanto esse luto não é elaborado, os pais usam os filhos para atacar um ao outro e para manter esse vínculo”.

Gardner, conforme ressalta Eduardo Leite, distinguiu três níveis ou estágios de desenvolvimento da síndrome: leve, moderado ou grave, cada qual merecedor de uma abordagem diferente. E as categorias não são determinadas pelo esforço do genitor alienador, mas pelo resultado nas crianças. “Se o diagnóstico é equivocado, certamente o tratamento também será, com inquestionável comprometimento das pessoas envolvidas. O tratamento não pode se basear apenas nos esforços de manipulação do genitor alienador, mas também deve levar em consideração a possibilidade de sucesso em cada criança.”

Alienação ParentalSinais – E são diversos os sinais que uma criança pode demonstrar quando está sofrendo. Algumas reagem com ansiedade, com nervosismo, agressividade e depressão, outras se isolam, repetem a agressividade recebida com os colegas de escola. “Algumas adoecem emocionalmente, ficam muito fragilizadas, porque na cabeça delas fica: ‘Meu pai maltratou minha mãe, não gosta de mim’, e ela pensa: ‘Como vou gostar do meu pai assim?’, ou vice-versa. Ela é absolutamente manipulada. E para o futuro, fica o vazio da figura paterna ou materna, essa ferida aberta no emocional”, exemplifica a psicóloga do TJ-PR Lígia Cemim.

Há, ainda, situações em que a criança que sofreu alienação só vai perceber as consequências quando crescer, como explica a médica Luci Pfeiffer: “Ela vai poder se questionar algum dia, e o mais difícil vai ser ela trabalhar com a culpa de ter maltratado o pai ou a mãe, de ter acreditado nas mentiras, mesmo sob influência”.

Consequências – Quando caracterizado qualquer ato de alienação parental, ou qualquer conduta que dificulte a convivência da criança ou adolescente com um dos genitores, a Justiça pode aplicar uma série de sanções, isoladas ou cumulativamente. Pode advertir o alienador; determinar a ampliação do regime de convivência com o alienado; estipular multa; determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; determinar a alteração de guarda para compartilhada ou inversão de guarda (passar do alienador para o alienado); determinar fixação do domicílio da criança ou adolescente; e declarar suspensão da autoridade parental (interrompendo a autoridade do pai ou da mãe praticantes da alienação). “Essa última é a mais grave de todas. E, em toda a jurisprudência que acompanhei, só vi um caso em que foi declarada a suspensão da autoridade parental, em todo o Brasil. O alienador perde a guarda do filho e o legislador primeiro suspende a autoridade parental, e caso haja reincidência, ela é rompida definitivamente. Essa é uma medida bem mais grave, que ocorre em um estágio gravíssimo de alienação parental”, explica o professor Eduardo Leite.

 


 

Priorização institucional

 

CNMPConsiderando os danos que a prática da alienação causa às crianças e adolescentes, e a importância da matéria, o Conselho Nacional do Ministério Público expediu recentemente a Recomendação 32/2016, para que a temática seja priorizada no Ministério Público brasileiro, por meio de políticas e diretrizes administrativas que fomentem o combate à alienação parental.

O documento ressalta que o descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental configuram abuso moral, podendo causar comprometimento da personalidade e sequelas, e que é imperativa a atuação ministerial com fins de promover a eficácia da atual Lei da Alienação Parental. Neste sentido, o CNMP recomenda que os Ministérios Públicos empreendam esforços para a inclusão do tema nos cursos de formação e atualização dos membros e servidores, bem como a priorização da temática no planejamento estratégico das unidades. Recomenda, ainda, aos membros com atuação na matéria, que sejam realizadas ações coordenadas de conscientização dos genitores sobre a alienação parental e sobre a importância da guarda compartilhada como meio de evitá-la. Clique aqui e leia a íntegra da recomendação.


Falsa acusação de violência

 

Quando o pai ou a mãe já não encontram mais meios para depreciar a imagem do outro e destruir a relação de um dos dois com os filhos, alguns recorrem à mais devastadora das possibilidades: a apresentação de uma falsa denúncia de abuso sexual. Essa atitude é especialmente grave e recebe da Justiça, em sua maioria, a manifestação mais imediata, que é a suspensão da visita do genitor alienado.

Tarcila Santos Teixeira, promotora de Justiça“É preciso salientar que casos como esse são minoria. Na Promotoria de Infrações Penais contra Crianças, Adolescentes e Idosos de Curitiba, em uma realidade em que tramitam, aproximadamente, três mil procedimentos criminais, temos um ou dois casos em que se apura a ocorrência de falsa acusação de abuso”, pontua a promotora de Justiça Tarcila Santos Teixeira. "O que se observa eventualmente são casos de alienação parental com implantação de falsas memórias na criança, tanto quanto a ocorrência da violência física como sexual. A experiência no trato com crianças e adolescentes e o apoio de profissionais especializados no assunto tem nos permitido diagnosticar tais casos, podendo-se afirmar que aqui o alienador não tem encontrado sucesso. Contudo, o sofrimento para a criança se verifica de uma ou outra forma, até porque, enquanto tudo não resta esclarecido, no mais das vezes são aplicadas medidas cautelares de afastamento do suposto agressor”. Portanto, o pai e a mãe que utilizam dessa estratégia estão sujeitos a uma série de sanções previstas em lei, inclusive de natureza criminal”, diz.

A médica pediatra e psicanalista Luci Pfeiffer ressalta que a partir de uma falsa denúncia de violência, têm-se o comprometimento do psiquismo da criança, seja porque ela tem que se defender do verdadeiro abusador, mas ele é o denunciante da história, seja porque é passada para a criança uma situação que ela não deveria vivenciar, que ela não tem condições de elaborar. “Na realidade é um abuso sexual indireto, porque quando a mãe ou o pai fazem uma falsa denúncia, e levam essa criança para fazer exame pericial no IML, e essa criança é obrigada a contar, a detalhar situações que ela não deveria ter conhecimento, ela é transformada em objeto de desejo sexual de outro, e só isso, só o fato de ela ser vista como um objeto de desejo do pai ou da mãe, já é uma violência psíquica imensa e vai deturpar toda a sexualidade dela se ela não for tratada”, diz.

Luci explica que é preciso que a criança ou adolescente possa elaborar essa situação para, no futuro, se libertar da culpa. “Gera todo um transtorno de sexualidade que, se não tratado, segue pra vida inteira. Constada a falsa denúncia, a primeira ação deve ser, até da Justiça, deixar bem claro pra criança ou adolescente: ‘nós avaliamos o caso, especialistas avaliariam, e descobrimos que seu pai estava brigando muito com a sua mãe e acabou inventando essas histórias’, ou ‘sua mãe estava brigando muito e acabou inventando tudo isso. É invenção, isso não existiu’. A criança precisa de alguém superior, de alguém que diga isso, algum psicólogo, psicanalista, o juiz, o promotor, porque aí ela se liberta da culpa”, explica.


Confira aula técnica especial sobre o tema, com o professor e jurista Eduardo de Oliveira Leite.






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