Igualdade no trabalho e em casa
Adriane Reis de Araujo, Procuradora Regional do Trabalho, Coordenadora-Geral da Comissão Permanente de Direitos Humanos em sentido estrito do Grupo Nacional de Direitos Humanos
“Como você compatibiliza a vida profissional e a familiar?” Essa pergunta frequentemente dirigida às mulheres não é feita aos homens. Por quê?
Segundo o IBGE/2009, o percentual de mulheres no mercado de trabalho corresponde a mais de 65% daquelas em idade útil. Se “tempo é dinheiro”, a maioria das mulheres adotou o bordão e está utilizando boa parte do seu dia de maneira produtiva e remunerada. O slogan associado à cultura moderna revela elementos valorizados no convívio social e termina por relegar a um plano secundário o trabalho doméstico – atenção à casa e família –, o qual, em regra, é gratuito. Em consequência, com respaldo na tradicional divisão de espaços e tarefas (a mulher-cuidadora fica em casa e o homem-provedor, no trabalho), o cuidado familiar recai principalmente sobre a mulher.
Essa ideia equivocada de que o trabalho doméstico não tem valor econômico – além de desconsiderar seu papel fundamental para a economia de qualquer país – reforça a discriminação da mulher, relegando-a a um papel subserviente ou subalterno. Sem levar em conta a mudança do cenário, observamos, com tristeza, a persistência da divisão de papéis com sobrecarga à mulher, mesmo naquelas famílias em que ela está no mercado de trabalho e divide com o homem a responsabilidade pelo pagamento das despesas domésticas. De acordo com pesquisa do Pnad/2011, as mulheres gastam 36,3 horas semanais no trabalho remunerado e os homens 42,5 horas. Por outro lado, essas mesmas mulheres acumulam 22,3 horas semanais de serviço doméstico (casa e família), contra apenas 10,2 horas de seus parceiros. Resultado: somando as duas atividades, as mulheres, com responsabilidades profissionais equivalentes, trabalham semanalmente cerca de seis horas a mais do que os homens.
A desigualdade na distribuição das tarefas domésticas certamente se reflete nas oportunidades no mercado de trabalho, pois a mulher, como qualquer trabalhador, deve comprovar o seu compromisso com a empresa para ascender a postos de responsabilidade no trabalho. E como fazer isso diante da exigência social de dupla jornada? A igual responsabilidade na construção do país fora de casa não deveria se estender à responsabilidade dentro de casa?
Há mais de 30 anos, a Organização Internacional do Trabalho preconiza a igualdade de tratamento para trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares na Convenção n. 156 (1981). Essa convenção pretende combater a discriminação contra a mulher no ambiente de trabalho com medidas simples que estendam aos homens os direitos decorrentes de responsabilidades familiares. Injustificadamente, porém, até o momento, essa norma não foi ratificada pelo Brasil. A ratificação desse texto é importante porque sinaliza um compromisso do governo brasileiro em tratar homens e mulheres igualmente. Ela tem, ainda, como efeito a revisão da legislação trabalhista e previdenciária brasileiras para admitir, como regra, algumas situações que hoje são reconhecidas pelos Tribunais em casos excepcionais, como, por exemplo, o gozo de licença-maternidade pelo pai (viúvo).
A ratificação da Convenção n. 156/OIT viria em reforço à obrigação do Estado de proteger a família, prevista em nosso texto constitucional (art. 226). Ali, a família é conceituada como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Ali, os direitos e deveres do casal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. Basta fazer cumprir a Constituição Brasileira como fundamento da revisão de nossa legislação em prol da equiparação de benefícios e direitos a trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidade familiar. A expansão de direitos certamente repercutirá em um viés ainda mais amplo, ou seja, na obrigação de o poder público oferecer serviços eficientes de cuidado familiar (creches, escolas em período integral e cuidado com idosos), como determina o art. 11.2, “c”, e art. 16.1, “d”, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher, da ONU, ratificada pelo Brasil em 01.02.1984. Talvez dessa maneira possamos vencer o descaso na implantação desses serviços públicos. A inércia do Estado, de toda sorte, não impede a adoção de medidas (normas coletivas, normas regulamentares e programas de igualdade) pelos empregadores e sindicatos com a intenção de igualar os direitos com essa finalidade.
Desfeito o quadro em que os papéis sociais se definiam pelo sexo, nada justifica a sobrecarga feminina ou mesmo o questionamento exclusivo da mulher quanto à compatibilidade entre família e trabalho. O problema do cuidado familiar diz respeito a todos. Ele não afeta exclusivamente a oportunidade de crescimento profissional feminino, ele é um mecanismo importante para que possamos construir uma sociedade igualitária, em que a mulher tenha liberdade para andar em espaços públicos e privados, traçar o seu futuro conforme a sua consciência, sem ser vítima de discriminação ou violência. Espero que esse mês de março propicie a reflexão de todos, mulheres e homens, governo e empresas, para agir na construção de um país melhor.