PARANÁ – Marco Legal da Primeira Infância – Conheça os principais avanços, limitações e desafios da nova lei
Tal constatação encontra amparo em estudos científicos. Segundo pesquisas é, por exemplo, entre os 18 meses e os seis anos que o ser humano tem o seu período mais propício para assimilar os conhecimentos relacionados aos símbolos. Da mesma forma, é entre os nove meses e oito anos que a pessoa desenvolve mais a linguagem e entre os quatro e oito anos que mais evolui nas habilidades sociais.
Avanços – Considerando ser a primeira infância uma fase única da vida, a lei procurou resguardar vários direitos das crianças de zero a seis anos. Entre os avanços trazidos, a promotora de Justiça Luciana Linero, que atua no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente e da Educação, destaca o fato de a legislação colocar, de forma expressa, a criança como sujeito de direitos, e de reforçar, de modo claro, a necessidade do desenvolvimento de ações e políticas públicas voltadas para essa fase específica do desenvolvimento. “Neste sentido, assegura direitos desde a gestação, através do atendimento especializado da gestante, da garantia de atendimento pré, peri e pós-natal, inclusive com foco na nutrição adequada, garantia de atendimento de saúde bucal e treinamento para o exercício da maternidade responsável.”
Para a promotora, o Marco Legal evidencia também o conceito da criança como sujeito de direitos ao normatizar sua oitiva e participação na definição de práticas e ações voltadas para o seu atendimento, mediante a escuta por profissionais qualificados e através de processos adequados às diferentes formas de expressão infantil.
Além disso, a promotora de Justiça comenta que, ao assegurar a possibilidade de extensão das licenças-maternidade e paternidade, o Marco Legal ressalta a importância da presença materna e paterna no desenvolvimento do recém-nascido. “Possibilita, portanto, que a figura do pai participe de forma mais presente, auxiliando nos primeiros vinte dias de vida do neonato e na readequação da estrutura familiar com a vinda do novo filho.”
Luciana salienta ainda a forte referência na legislação à necessidade de desenvolvimento de ações e programas de efetivo auxílio e promoção familiares, evidenciando a opção legislativa pela manutenção dos vínculos familiares biológicos. Destaca também atenção à educação, saúde, lazer, cultura, ao direito de brincar e de frequentar espaços culturais, propiciando também o reconhecimento da criança como agente produtor de cultura. Por fim, ela ressalta que a lei reforça a orientação de que a criança deve ser educada sem a utilização de castigos físicos e que tais meios não são aceitos como pedagógicos. Ao mesmo tempo, a lei assegura a proteção contra a pressão consumista e o apelo mercadológico precoce.
Limitações e desafios – Apesar de a nova legislação ter trazido avanços importantes na proteção aos direitos das crianças de zero a seis anos, poderia ter evoluído mais em algumas áreas, principalmente no campo educacional. Neste sentido, a principal crítica que se faz é com relação à falta de previsão de um prazo para a universalização da oferta de vagas em creches, para crianças de zero a três anos. Luciana Linero diz que essa questão tem impacto em praticamente todos os municípios brasileiros, onde “a carência de vagas prejudica as famílias, que delas necessitam para a sua organização, e as crianças, que não têm acesso a estímulos importantes para seu pleno desenvolvimento.”
A promotora de Justiça Hirmínia Dorigan de Matos Diniz, que atua na área da Educação do Centro de Apoio, acrescenta que, ao não ressalvar o atendimento imediato com vagas em creches para todas as crianças de zero a três anos, o Marco Legal reproduz um erro contido no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014), visto que tal direito é expressamente previsto na Constituição Federal, estando ambos, portanto, maculados de inconstitucionalidade.
As duas promotoras de Justiça destacam também a ausência de fontes de financiamento específicas para custear as políticas públicas instituídas e ou ratificadas pela lei como o grande desafio para sua implementação. “Sem essa previsão, a concretização dos propósitos almejados pelo Marco Legal fica comprometida”, comenta Hirmínia.
Confira, abaixo, uma entrevista completa com a promotora Hirmínia Dorigan de Matos Diniz, ressaltando a relação da nova lei e a educação e, na sequência, um box que resume os principais direitos assegurados pelo Marco Legal.
Na área da educação, quais são os principais direitos assegurados pelo Marco Legal?
A Lei 13.257/2016 assegura, dentre várias ações, educação às crianças de zero a seis anos, reafirmando, portanto, o direito já garantido pela Constituição Federal. Na área educacional, a Lei reforça a educação infantil como política pública prioritária (art. 5º), inclui a participação da criança na definição das ações que lhe digam respeito e no aprimoramento da garantia da oferta dos serviços (art. 4º), disciplina a expansão da educação para as crianças de zero a três anos, estipula que as instalações educacionais obedeçam aos padrões de infraestrutura estabelecidos pelo Ministério da Educação, com profissionais qualificados (artigo 62) e com currículo e materiais pedagógicos adequados e, também, que o Poder Público organize e estimule a criação de espaços lúdicos em locais onde há circulação de crianças (artigo 16 e 17).
O Marco Legal também reforça o papel da criança como cidadã, e não mera expectadora de direitos, e fortalece a responsabilização conjunta da família, da sociedade e do Estado pelos cuidados à infância e a garantia, com prioridade, dos direitos infantis. Isso porque é sabido que o “preparo para o exercício da cidadania” é um dos três pilares dos objetivos contemplados pela Carta da República à Educação. Também, que a cidadania é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, fixados já no artigo 1.º da Constituição Federal. Ao sistema educacional, portanto, incumbe esta complexa tarefa de formar cidadãos, ou seja, pessoas efetivamente autônomas, independentes, socialmente atuantes, verdadeiramente emancipadas. Por isso, a necessária interação das políticas públicas, como a saúde, a educação, a assistência, a cultura, dentre tantas outras, diante da dimensão do objetivo que se propõe – tornar a criança autora e sujeito de seu próprio destino.
Especificamente no contexto educacional, na sua opinião, a lei apresenta falhas?
Sim, sobretudo no que se refere à falta de um enfrentamento mais objetivo quanto à precariedade da oferta de vagas em creches, para crianças de zero a três anos. Vale ressaltar que esse é um problema que atinge uma camada bastante expressiva da população, especialmente vulnerável social e economicamente. De acordo com os dados, relativos a 2015, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e, de 2012, do Departamento de Informática do SUS (Datasus), no Brasil, 9.309.109 crianças em idade da primeira etapa da educação infantil (creche) encontram-se fora da escola e, no Paraná, 447.562 crianças não possuem esse atendimento educacional essencial. Em que pese a educação infantil de crianças de zero a três anos não ser considerada de frequência obrigatória, tendo, porém, a família o direito, se assim o quiser, de matricular seus filhos em uma instituição de qualidade, o deficit na creche, no Brasil (82% do total de 11.234.753) e no Paraná (77% do total estimado de 580.884), provavelmente, é um indicativo próximo da realidade, uma vez que o caráter assistencial, inegavelmente, está associado a este atendimento.
Quem mais sofre com essa limitação?
A maior parte das crianças nessa faixa etária que se encontram fora das unidades de atendimento à educação infantil pertence, notadamente, à parcela mais pobre e vulnerável da população. A garantia da política pública da educação infantil representa, portanto, não somente estímulo neurológico adequado à etapa do desenvolvimento correspondente mas, sobretudo, pela sua urgência, representa a garantia dos cuidados básicos básicos inerentes à primeira fase da infância.
A senhora citou apenas a creche para as crianças de zero a três anos. E o que a lei fala sobre a educação infantil para crianças de quatro e cinco anos?
A nova legislação não se ocupa das vagas para a segunda etapa da educação infantil – pré-escola –, ou seja, para as crianças de quatro e cinco anos, certamente em razão da disposição constitucional já haver assegurado, por meio da Emenda Constitucional 59/2009, que a universalização dessa oferta, já se integralizasse neste ano de 2016. Ocorre que, entretanto, a situação ainda não resta concretizada na grande maioria dos municípios do Brasil e, no Paraná, certamente, não é diferente. O comando constitucional encontra-se violado, também para esta parcela da infância. Sobre esse tema, MP-PR tem projeto estratégico específico, exigindo dos municípios o cumprimento dessa determinação constitucional (saiba mais).
A lei também normatiza qual deve ser a qualificação dos professores que trabalham com a primeira infância?
Em relação à qualificação dos profissionais da educação infantil, registra-se que, em que pese seja válida e necessária a preocupação com a formação dos professores, trazida pelo Marco Legal, a Lei 12.796/2013 revogou o parágrafo 4º do artigo 87 da Lei 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) –, que, ao instituir, em seu caput, o que denominou de “Década da Educação”, determinava, até o final desse prazo, que só seriam admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço, permanecendo, portanto, a formação mínima em nível médio na modalidade normal, conforme estabelece o artigo 62 da lei educacional nacional. Assim, para atuar na educação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, a legislação federal educacional não estabelece a obrigatoriedade da formação superior, o que acaba por gerar a contratação de profissionais do magistério. Vale dizer, ao fazer referência a profissionais qualificados, aduzindo: “(…) conforme dispõe a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996”, está apenas aderindo, na verdade, à qualificação mínima estabelecida, para atendimento da etapa de desenvolvimento mais importante do ser humano.
Como o Marco Legal trata a questão da inclusão da criança com deficiência?
Também, nos moldes do artigo 21, ao alterar o artigo 11 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), especialmente a redação conferida ao § 1.º, referente ao atendimento de saúde da criança com deficiência, o Marco Legal poderia ter procedido com relação à educação infantil, contemplando, expressamente, o direito ao atendimento, sem discriminação ou segregação, em suas necessidades gerais pedagógicas e específicas, tendo em vista que aquelas – tanto a discriminação, quanto a segregação – ainda são comuns na educação. Poderia a Lei ter representado uma quebra de paradigma, incorporando os ditames da Lei 13.146, de 6 de julho de 2015 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), em conformidade com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 186, de 09 de julho de 2008 e promulgados pelo Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, com força, portanto, de Emenda Constitucional.
E o que a lei estipula com relação à gestão democrática do ensino público?
Neste ponto, o Marco Legal deixou passar, também, grande oportunidade, ao não vincular o inciso II do artigo 4.º – que trata da inclusão da participação da criança na definição das ações que lhe digam respeito – à previsão da Meta 19 do Plano Nacional de Educação – que trata da gestão democrática do ensino público. Se é na escola que a criança será “preparada para o exercício da cidadania”, e o Marco Legal pretende ver implantada esta participação, seria de todo recomendável que garantisse expressamente o aprendizado simultaneamente à própria participação, já no ambiente escolar. Seria de extrema relevância, uma vez que, o próprio Plano Nacional de Educação, à exceção das Estratégias 19.4 – que trata, ao lado das associações de pais, dos grêmios estudantis, e Estratégia 19.6 – que trata da estimulação à participação e à consulta aos alunos (ao lado da consulta aos profissionais da educação e familiares), na formulação dos projetos político-pedagógicos, currículos escolares, planos de gestão escolar e regimentos escolares, nada elencou, especificamente, em relação às crianças na faixa da primeira infância, na gestão democrática do ensino público. Por certo que ela não se exclui, mas a correlação expressa, se houvesse, a fortaleceria.
Na sua opinião, quais são os maiores desafios para implementar a lei?
O desafio que se estabelece para a implementação da aludida legislação continua sendo a priorização do investimento dos recursos orçamentários na área da educação. Transformar essa determinação em priorização efetiva e concreta parece ainda ser um grande tabu no cenário político-jurídico nacional. Os gestores, apesar de todo o comando Constitucional vigente desde 1988, ainda não assimilaram que a criança é prioridade absoluta e que isso significa absoluta prioridade na destinação dos recursos públicos. O Poder Judiciário, lado outro, não raras vezes, quando instado, ainda elege como fundamento de suas decisões princípios já ultrapassados – como o da separação dos poderes e reserva do possível que, contextualizadamente, há muito, não mais se aplicam às políticas públicas garantidoras de direitos fundamentais. Isso, mesmo diante da solidez de precedentes da Corte Suprema. Sem planejamento e financiamento adequado e suficiente, a determinação constitucional, a cada violação, perde a sua luz, na mesma proporção em que essa violação faz morrer o futuro de cada criança desassistida – pelo poder público, pela sociedade e pela família.