PARANÁ – Ciclo de palestras promove reflexões sobre o uso e o tráfico de drogas
A cocaína é a principal droga traficada nos aeroportos do Brasil, representando 97% do total apreendido. É o que aponta pesquisa inédita, divulgada na última sexta-feira (1º de julho), em Curitiba, durante o ciclo de palestras “Reflexões sobre o uso e o tráfico de drogas”, realizado no auditório do edifício-sede do Ministério Público do Paraná. Segundo o estudo, o entorpecente é transportado majoritariamente por homens (63%), estrangeiros (76%) e com ensino médio ou superior (44% e 26% respectivamente). Entre os estrangeiros julgados no Brasil, independentemente da quantidade de droga apreendida, as maiores penas são aplicadas aos africanos e as menores aos europeus (veja, abaixo, mais detalhes do estudo).
Além do tráfico internacional de entorpecentes, as palestras realizadas abordaram o efeito das drogas nos usuários e o processo de internação psiquiátrica dos dependentes químicos. O evento foi promovido pelo Comitê de Enfrentamento às Drogas do MP-PR, por meio do Projeto Semear – Enfrentamento ao Álcool, Crack e outras Drogas, e integrou a programação da Semana Estadual de Prevenção ao Uso Indevido de Drogas – Previda.
Abertura – Abrindo o evento, o procurador-geral de Justiça, Ivonei Sfoggia, lembrou que o Planejamento Estratégico do MP-PR contempla o enfrentamento à drogadição nas mais diversas áreas, visando à atuação integrada do Ministério Público para a implementação de políticas públicas de prevenção e atendimento aos usuários. Para isso, declarou, é fundamental o trabalho em duas frentes: a prevenção e a repressão ao tráfico. Nesse sentido, informou, já estão sendo feitas tratativas, como um ato conjunto da Procuradoria-Geral de Justiça, do Tribunal de Justiça do Paraná e das Corregedorias do MP-PR, do TJPR e da Secretaria Estadual de Segurança Pública, para a viabilizar o perdimento cautelar de bens apreendidos de traficantes, de modo que os valores assim arrecadados possam ser aplicados em ações de prevenção e repressão ao tráfico. Durante a abertura, o procurador-geral de Justiça citou também questões atuais relacionadas ao tema das drogas, como a possibilidade de descriminalização do porte de entorpecentes para uso próprio, que está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal, e a necessidade de o Ministério Público cobrar políticas públicas sobre drogas que sejam efetivas. Ante a complexidade do tema, afirmou ser fundamental a capacitação contínua dos membros do Ministério Público e o compartilhamento de informações com a comunidade.
A promotora de Justiça Cristina Corso Ruaro, coordenadora do Comitê de Enfrentamento às Drogas do MP-PR e do Projeto Estratégico Semear, comentou que o evento no Ministério Público encerrou a Semana Previda, prevista por legislação estadual para acontecer na última semana de junho, como forma de contribuir para a difusão de conhecimento aos integrantes do Ministério Público e à população. A promotora lembrou que o MP-PR lançou no dia 31 de março o “Manual de Orientação Funcional” do Projeto Semear para o enfrentamento ao Álcool, Crack e outras Drogas, que, embora seja direcionado especificamente aos promotores de Justiça, tem informações de interesse para a comunidade e está disponível, para consultas, no site do Projeto Semear. Em sua fala, Cristina comentou também a possibilidade de descriminalização do uso da maconha, vista com apreensão por ela. A promotora ainda manifestou preocupação com decisões do STF em matérias ligadas às drogas, consideradas por ela como contraditórias, visto que, se por um lado autorizou-se o uso do Canabidiol (CBD) – uma das várias substâncias extraídas da maconha mas sem o efeito psicoativo, ainda em fase de estudos –, por outro lado, suspendeu-se a eficácia da lei que autorizava o fornecimento da fosfoetanolamina, conhecida como “pílula do câncer”, sob o argumento de que “o desconhecimento sobre sua eficácia e efeitos colaterais são incompatíveis com os direitos fundamentais à saúde, segurança, vida e dignidade da pessoa humana”, preocupações que também estão presentes com eventual descriminalização do porte de drogas ilícitas para uso próprio.
Efeitos no organismo – A primeira palestra foi proferida pela professora Roseli Boerngen de Lacerda, bióloga, mestra em Farmacologia e doutora em Psicobiologia. Ela tratou dos efeitos das drogas sobre o cérebro, explicando os mecanismos pelos quais o uso das drogas psicotrópicas afeta o cérebro e leva à drogadição. Esclareceu que vencer a adição não é mera questão de força de vontade, uma vez que o cérebro do adito fica condicionado de tal modo que passa a sentir necessidade da droga.
O uso começa a partir de algumas vulnerabilidades do usuário – por exemplo: lar caótico, abuso sexual, uso e atitudes familiares, influência de colegas, atitudes da comunidade, fraco desempenho escolar, genética, transtornos mentais, disponibilidade. No começo, o usuário faz uso da droga porque gosta; a partir do momento em que há a adição, passa a usar por necessidade. Por isso, o caminho mais eficaz para combater o consumo de drogas é a prevenção. A palestrante lembrou que o uso de drogas existe há milênios e que jamais será abolido – portanto, o melhor meio de enfrentar a questão é com prevenção, educação e esclarecimento. Para ajudar o usuário, é preciso haver atendimento médico, apoio social, novas oportunidades e possibilidades de apego a uma nova motivação (a religião, por exemplo).
Internações – Em seguida, a promotora de Justiça Andreia Cristina Bagatin, que atua no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção à Saúde Pública do MP-PR, falou sobre a questão das diferentes formas de internação psiquiátrica por uso de drogas – voluntária, involuntária e compulsória, ou seja, determinada pela Justiça. Ela destacou os limites à intervenção judicial, a partir de um breve histórico sobre os atendimentos psiquiátricos no país e um apanhado da legislação pertinente à matéria e que é usada para sustentar esse tipo de medida.
“As pessoas acabam procurando a Promotoria de Justiça ou mesmo o Poder Judiciário depositando nas instituições uma expectativa de solução para problemas que são muito mais complexos do que aquele litígio individual”, disse a promotora, apontando o senso comum de que a internação da pessoa envolvida com drogas seria a melhor alternativa, quando não a única, pois na verdade a questão é muito mais complexa e demanda, sempre, avaliação, indicação e acompanhamento médico especializado.
Andreia reforçou ainda a importância da atenção primária aos casos de drogadição que precisam de suporte psiquiátrico, notadamente do primeiro atendimento aos pacientes, que pode ser feito tanto pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), quando a cidade tiver esse serviço, quanto nas unidades de saúde básica, que têm previsão em portaria do Ministério da Saúde para fazer atendimento de urgência psiquiátrica – situação que representa a maioria dos municípios do Paraná. “O tratamento do paciente não se esgota com a internação. Isso, no mais das vezes, é um primeiro momento de um processo que talvez seja prolongado pela vida toda”, destacou a promotora.
Pesquisa – A palestra final ficou a cargo da defensora pública federal Érica de Oliveira Hartmann e do juiz federal Guilherme Roman Borges, que apresentaram, em primeira mão, a pesquisa “Tráfico Internacional de Entorpecentes – O fluxo no maior aeroporto internacional do Brasil”. O levantamento, realizado em cinco anos, avaliou 947 sentenças judiciais por tráfico internacional de drogas, de 1999 a 2013, de pessoas presas no Aeroporto Internacional de Guarulhos/Cumbica, em São Paulo, que responde por 60% do tráfego de passageiros em todo o Brasil. Os números apresentados revelam o perfil das pessoas acusadas de tráfico internacional pelo transporte de drogas nos aeroportos, as populares “mulas” do tráfico. Foram destacados dados como o tipo de droga traficado, a origem e o destino das pessoas que vinham ao Brasil buscar drogas, o volume de estrangeiros em relação ao de brasileiros, o gênero e a escolaridade das pessoas processadas, o volume médio de droga levada, as penas aplicadas, o regime de pena e como foi feita a defesa dos réus.
“Os acusados são pessoas quase sempre com bons antecedentes e uma situação financeira muito precária nos países de origem. Não raro, são ameaçadas para fazerem a viagem e irrelevantes para o processo de tráfico como um todo”, relatou o juiz. Érica destacou a escolaridade dos réus e a diferença na aplicação de penas em relação à origem dos réus que recebem penas maiores. “A questão da escolaridade nos surpreendeu, de certa forma, pois de maneira geral os acusados por tráfico avaliados na pesquisa tinham ao menos o ensino médio completo, o que não é regra dentro da realidade brasileira. A grande massa da nossa população carcerária não tem o ensino básico, por vezes nem o fundamental completo”, pontuou a defensora pública. Quanto às sanções, foi indicado no levantamento que os africanos recebem as maiores penas, independentemente da quantidade de droga que levam. “Esse é um dado que nos causou bastante perplexidade, pois não há outro critério objetivo a ser considerado, todos os réus tinham basicamente o mesmo perfil. As leituras possíveis são várias e bastante tristes”, disse a defensora pública.
Critérios – A questão da objetividade, aliás, foi apontada pelos dois pesquisadores como um dos escopos do trabalho: oferecer subsídios reais para as deliberações relacionadas ao tráfico de entorpecentes, que, via de regra, são pouco objetivos. “O combate ao tráfico internacional é conduzido de uma maneira precária, cega, muito baseada em preconceitos. Isso é terrível, especialmente se pensarmos no impacto que temos na vida das pessoas, atuando dentro do poder Judiciário”, afirmou Borges. “Assim, entre os propósitos da nossa pesquisa, estava o de permitir uma atuação judicial melhor, mais racional, menos voluntarista”, disse o juiz.
“As possibilidades e as leituras são infinitas, e a interpretação desses dados cabe a cada um de nós. Espero sinceramente que sejam usados para melhorar o combate ao tráfico”, afirmou Érica. “Nosso país não é grande produtor de drogas, mas é um grande corredor. No tabuleiro internacional do tráfico, temos um papel significativo, mas não temos uma racionalidade nesse combate, não há dados efetivos, pesquisas. É nesse sentido que queremos contribuir”, declarou o juiz. O resultado da pesquisa foi reunido em um livro. O levantamento também será remetido ao Itamaraty.
Mesa-redonda – Além das palestras à tarde, na parte da manhã, no auditório da Associação Paranaense do Ministério Público, aconteceu a “Mesa-redonda do Grupo de Discussão e Trabalho do Projeto Estratégico Semear”, com o tema “A descriminalização do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006: avanço ou retrocesso? – Análise dos votos prolatados no Recurso Extraordinário nº 635.659 do Supremo Tribunal Federal”. O objetivo foi ampliar a discussão sobre o tema, tomando por base os principais pontos mencionados por três dos 11 ministros do STF que já apresentaram seus votos no julgamento do recurso extraordinário que pode resultar na descriminalização do porte de droga para uso próprio.
Na oportunidade, foram tratados de diversos aspectos relativos ao artigo 28 da Lei 11.343/2006, que atualmente prevê como crime o porte de drogas para uso próprio. O objetivo foi enfocar a temática destacando-se que, independentemente de criminalização ou descriminalização, o Ministério Público necessita tomar frente para cobrar políticas públicas efetivas, até porque as atualmente em curso são precárias, podendo, nesse panorama, tornarem-se ainda mais deficitárias com a descriminalização. Neste sentido, foram abordados aspectos teóricos e práticos sobre o tema; a necessidade de ampliação das estruturas da Rede de Atenção Psicossocial (que hoje não atende a demanda de usuários que precisam de acolhimento ou tratamento); e a importância da implementação de estruturas como o Núcleo de Assessoria Psicossocial nos Juizados Especiais Criminais – considerando que as Oficinas Educativas (previstas na Lei 11.343/2006) do Juizado Especial Criminal de Curitiba foram destacadas entre as cinco boas práticas realizadas no Brasil, pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Também foram abordados aspectos da política criminal norte-americana para enfrentamento ao tráfico e uso de drogas, entre outros pontos citados no Recurso Extraordinário 635.659 do Supremo Tribunal Federal.