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SANTA CATARINA – Entrevista: como o MPSC atuou para garantir parte das multas da Lava jato para o sistema socioeducativo de Santa Catarina

O Estado de Santa Catarina foi contemplado com cerca de R$ 34 milhões de reais para ampliar a capacidade de atendimento do sistema socioeducativo com a construção de novas unidades de internação para adolescentes em conflito com lei.

A atuação do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) para garantir a vinda desses recursos e a aplicação correta desse dinheiro nas áreas mais necessitadas foi decisiva.

Nesta entrevista, o Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (CIJ-MPSC), Promotor de Justiça João Luiz de Carvalho Botega, que fez parte do grupo de trabalho do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) que encabeçou as articulações para que os recursos fossem destinados para as áreas mais urgentes nos estados e não fossem para o caixa único da União, detalha como nasceu essa solução inovadora para tornar mais efetiva a restituição  à sociedade dos danos provocados pela corrupção.

Pergunta: Promotor, historicamente o dinheiro de multas sempre foi revertido à restituição dos danos de quem foi diretamente atingido e o MP tem um papel direto na definição do uso desses recursos. Neste caso da Lava Jato, como foi desempenhado esse papel e o que mudou?

Promotor de Justiça João Luiz de Carvalho Botega: Neste caso, tivemos uma mudança provocada até pelos valores que foram recuperados pela Operação Lava Jato. Valores vultosos que foram subtraídos da sociedade brasileira pela prática de atos de corrupção e que, em razão de acordos de leniência, de colaboração premiada, foram recuperados e recolhidos aos cofres públicos brasileiros. Assim, o Ministério Público teve um papel central no combate à corrupção, e esse combate gerou a recuperação desses valores pela Operação Lava Jato. 

Considerando que eram valores bastante elevados, muito acima do que comumente se observa, o Ministério Público também tentou se colocar a fim de induzir políticas públicas. O Ministério Público, como defensor dos interesses difusos e coletivos, dos serviços de relevância pública do Estado, tem interesse em fazer com que esse dinheiro seja aplicado da melhor forma possível pelo Poder Executivo, que é o responsável por executar as políticas públicas, em princípio.

P: Apesar de a operação ter atuado aqui em alguns momentos, Santa Catarina não foi o seu foco, e o dinheiro iria diretamente para os cofres da União. Qual foi o papel do MPSC para conseguir trazer esses recursos para o estado?

J.L.C.B.: Num primeiro momento, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge (à época), ajuizou uma ação de descumprimento de princípio fundamental (ADPF) solicitando que o Supremo Tribunal Federal definisse as possibilidades de destinação dos recursos recolhidos pela Operação Lava Jato. A partir daí, instalou-se um diálogo entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e o STF, com a participação do Ministério Público, que foi o vetor desses recursos. Nós conseguimos nos inserir nesse debate por meio de um grupo de trabalho do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), do qual o MPSC faz parte, criado em 2017, para discutir a política nacional de atendimento socioeducativo.

Esse grupo de trabalho produziu um levantamento, lançado no ano passado, da execução dos programas socioeducativos de internação e semiliberdade no país, e lá constatou que havia, no segundo semestre de 2018, um déficit de 55 unidades que precisariam ser criadas no Brasil para dar conta tanto dos estados que tinham superlotação das suas unidades socioeducativas quanto dos estados que tinham fila de espera, como era o caso de Santa Catarina.

Esse déficit gerou a necessidade de uma atuação mais incisiva do Ministério Público, e , por meio desse grupo de trabalho do qual o Ministério Público de Santa Catarina faz parte até hoje, nós tentamos provocar essa discussão com a Procuradora-Geral da República para que ela levasse essa ADPF até o Supremo Tribunal Federal para que conseguíssemos destinar parte dos recursos da multa da Lava Jato para que fossem aplicados no sistema socioeducativo nacional.

P: Houve algum risco de essa verba não ser aproveitada – por desconhecimento, por ser uma novidade, por ainda não fazer parte da rotina? Isso falando de todos os poderes e esferas envolvidos – Executivo, Legislativo, Ministério Público, etc.).

J.L.C.B.: Em primeiro lugar, foi um momento muito importante quando nós tivemos a participação do então conselheiro do CNMP Leonardo Accioly, que já se colocou à disposição e intermediou a reunião com a Dra. Raquel Dodge, que nos recebeu de portas abertas e entendeu a preocupação do grupo de trabalho do CNMP. A partir disso conseguimos sensibilizá-la acerca da destinação dos recursos, e ela levou isso ao Ministro (do STF) Alexandre de Moraes, que era o relator da ADPF. Houve, então, uma discussão de alto nível no âmbito do Supremo Tribunal Federal, com participação dos Poderes Executivo e Legislativo e da Procuradoria-Geral da República, e é claro que esse valor foi destinado para algumas áreas como educação, meio ambiente, ciência e tecnologia, e uma parte foi destinada ao sistema socioeducativo – no caso, ao atual Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que é o órgão responsável pela política de socioeducação no país. Agora, pela lei do SINASE – a lei que regulamenta o sistema socioeducativo – na escala federativa, o ente responsável por executar as medidas de meio fechado (internação e semiliberdade) são os estados. Desse modo, o Governo Federal não executa diretamente essas medidas, nem o município: é necessário que o Governo Federal repasse esse recurso para os estados, a partir de critérios de necessidade e de possibilidade do estado de receber esses recursos. 

Assim, desde o começo nós fizemos essa mobilização para que parte desse recurso fosse destinado aqui para Santa Catarina por meio de articulações com o Governo Federal, com representantes da Secretaria de Admissão Prisional e Socioeducativa e com o Governo do Estado de Santa Catarina – porque precisamos qualificar ainda o nosso sistema socioeducativo. Foi um trabalho muito intenso durante todo o ano de 2019, com diversas reuniões e contatos para que conseguíssemos garantir esses recursos.

P: Só para entender: o Governo do Estado estava apto, mas tinha que mostrar que havia um projeto, alguma coisa assim. É isso?

J.L.C.B.: Exatamente, isso também. 

Temos feito um trabalho com o Governo do Estado desde 2017, um trabalho de parceria e ao mesmo tempo de fiscalização e cobrança, com muito foco na gestão. Então a gente precisa ter conhecimento dos dados atualizados para que possa mostrar a necessidade dos investimentos e a quais regiões, a quais municípios nós vamos destinar esses investimentos

A partir desse diálogo que nós estabelecemos com o Executivo estadual, nós começamos a trabalhar com a perspectiva de alguns projetos, e também temos hoje um painel de dados que nos permite visualizar, no estado, quais são as regiões que mais necessitam – por conta da demanda de vagas que surgem diariamente ou semanalmente nessas regiões – e também por conta das questões estruturais de unidades que são mais precárias, mais antigas, que a gente pretende substituir. Tudo isso foi levado em consideração e passou por uma parceria, mas também por uma fiscalização efetiva e pelo induzimento da política pública por parte do Ministério Público de Santa Catarina. 

É uma política pública executada pelo Estado, mas, sem dúvida, sem a parceria do MPSC, do próprio Tribunal de Justiça de Santa Catarina e de outros órgãos, não teríamos conseguido captar esses recursos nem qualificar a política de atendimento socioeducativo em meio fechado, como temos conseguido nos últimos anos em Santa Catarina.

P:Houve a participação do MPSC para indicar quais unidades ou regiões receberiam esse dinheiro ou o que seria feito com ele? Foi uma decisão só do Executivo?

J.L.C.B.: É uma decisão do Executivo, mas ela foi tomada a partir de dados comuns. Isso é o que eu acho mais importante, porque, a partir do momento em que construímos esses painéis de dados, fica claro para todo mundo, é transparente. O mesmo painel que eu olho aqui no Ministério Público o gestor do departamento socioeducativo está olhando também, então a gente já tem mais ou menos o conhecimento e consegue tomar as decisões mais acertadas a partir disso. 

Assim, deixa de ser uma decisão completamente discricionária do gestor para que a gente tenha de fato, a partir desse painel de dados comum entre as instituições, a garantia de que esse valor vai ser investido naquele local que mais precisa.

P: E esses locais já estão definidos? Vão ser mesmo Blumenau, Lages, ou ainda tem margem para discutir?

J.L.C.B.: Isso está em discussão, na verdade. Nossas áreas prioritárias hoje seriam inicialmente Blumenau, que é uma região que precisa de uma unidade grande. Não há nenhuma unidade de internação definitiva nessa região. Nós temos uma unidade de pequeno porte em Rio do Sul e uma em Blumenau, que também é bastante antiga e necessitaria de uma ampla reforma. Então toda a região do Vale do Itajaí se ressente muito de falta de vagas, embora não faltem vagas no estado, mas os adolescentes acabam tendo que deixar a região do Vale do Itajaí e ir para Joinville, Lages ou até São José. Então precisaríamos contemplar aquela região com uma unidade nova. Nossa maior necessidade seria Blumenau, por conta dessas questões, e aí nós temos discutido a partir desses dados com o Departamento de Administração Socioeducativa (DEASE) a possibilidade de, com esses mesmos recursos, construir ou reformar outras unidades. Então tem a possibilidade da unidade de Lages, que é muito antiga e na qual não cabe mais nenhuma reforma. Deveria ser construída uma nova naquele espaço, e, como é a região central do estado, é importante que a gente tenha uma unidade bem estruturada naquela região. Também estamos avaliando uma unidade para a região litorânea do Norte, entre Itapema e Itajaí, Balneário Camboriú, que também tem uma necessidade grande, sobretudo na época do verão, na alta temporada. Temos uma unidade, apenas, em Itajaí, mas é pequena também, com cerca de 20 adolescentes, e precisaria de uma unidade maior para atender à demanda daquela região também.

P: Está carimbado para a construção de novas unidades ou pode ser reforma ou outro tipo de investimento?

J.L.C.B.: O convênio que foi assinado pelo Governo do Estado com o Governo Federal estabelece a construção de unidades, sem estabelecer o local nem se há possibilidade de reformar algum espaço. 

Estamos tentando utilizar esse recurso para a construção de novas unidades e para a ampliação das que já existem. Algumas unidades não são mais passíveis de reforma, tem que ser construída uma nova. Para as unidades que precisam de uma reforma, estamos buscando outros recursos do próprio Executivo ou mesmo de outros fundos, como o FRBL, que é um fundo de que o MPSC faz parte, para que a gente faça essas reformas menores, de forma pontual – as que têm um custo menor – sem precisar utilizar esses recursos que vêm da Lava Jato.

P: O MPSC está participando dessas conversas com o Executivo para a definição desses locais?

J.L.C.B.: Sim, sem dúvida, sempre no sentido de induzir à boa política pública. Essa definição compete ao Estado e ao Poder Executivo. Agora, como temos uma gestão com quem temos uma parceria estabelecida, por meio de reuniões periódicas e contatos quase diários para resolver questões pontuais, tentar avançar em alguns gargalos do socioeducativo, 

acabamos tendo a possibilidade de dialogar com o Estado, não a partir do que o Promotor, o Governador, o Secretário ou o Prefeito acham, mas a partir desses dados sociais concretos, nos quais a gente consegue visualizar quais são as regiões que mais necessitam das unidades socioeducativas hoje.

P: E essa experiência de uso dos recursos da Lava Jato pode ser continuada, aplicada em outros casos? Ela pode ser um case, um modelo a ser seguido em outras situações?

J.L.C.B.: Me parece que sim. Eu acredito que a forma como foi resolvida a distribuição desses recursos da Lava Jato acaba se transformando numa possibilidade de atuação dos órgãos de controle, não no sentido de executar a política pública, mas de permitir que a política pública se realize da melhor forma possível. Eu lembro que o MPSC faz parte do FRBL, o nosso Fundo para Reconstituição de Bens Lesados, que também já faz um pouco esse papel. Parte das condenações aqui em Santa Catarina, do MP estadual, é repassada para o FRBL, que custeia vários projetos de impacto social que nós temos aqui no estado. 

Agora, essa perspectiva que foi trazida pela multa da Petrobras arrecadada pela Operação Lava Jato, considerando que eram valores muito maiores, considerando agora o advento do acordo de não persecução penal – uma novidade trazida pelo pacote anticrime – o que a gente chama de justiça penal negociada e os acordos da área de improbidade administrativa vão permitir ao Promotor de Justiça – claro, sempre de forma transparente, impessoal – fazer com que esses recursos retornem de fato para a sociedade, que eles não caiam lá no caixa único do Governo, e que retornem efetivamente para uma ação concreta para a sociedade, que foi, no fim das contas, a lesada.

Então a nossa perspectiva é tentar intensificar, na medida do possível a atuação na indução de políticas públicas, não só com esses recursos, com a nossa atuação tradicional de indução de políticas públicas. Mas esses recursos recuperados abrem uma janela de oportunidade para que a gente possa induzir as políticas públicas sempre a partir das evidências colhidas que nós temos à disposição, para não cair num achismo, para não cair eventualmente no decisionismo de um e outro agente público.

P: O dinheiro acaba indo para o fundo comum, o caixa único da União, por decisões meramente políticas, para quem tem mais cacife no Congresso, e nem sempre aquilo é para resolver a origem do problema.

J.L.C.B.: Exatamente. Vai para pagar dívidas, para pagar outras questões que talvez não sejam prioritárias para a sociedade naquele momento.

P: E a multa que tem esse objetivo de restituição passa a valer para isso mesmo, né?

J.L.C.B.: Isso mesmo. É importante ressaltar, e até o nosso Procurador-Geral costuma falar, que o Executivo é central na realização das políticas públicas, mas ele não faz isso sozinho: o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, os Tribunais de Contas e também o Ministério Público têm participação nas políticas públicas. 

Esse caso da Lava Jato é um exemplo, mas a gente tem casos aqui em Santa Catarina, por exemplo, de indução de boas políticas públicas, de boas práticas, por meio do MPSC. A fila de espera de transparência do SUS é uma delas, como o fortalecimento do sistema socioeducativo, que nós temos visto aqui. São políticas públicas que muito provavelmente não se realizariam se não fosse a atuação sistemática, mas também incisiva e resolutiva, do Ministério Público em parceria com o Poder Executivo.

P: Entrando na questão do sistema socioeducativo, qual é o diagnóstico mais recente? Que tipo de impacto teria esse montante de R$ 34 milhões no nosso sistema?

J.L.C.B.: Sem dúvida é o maior investimento que nós tivemos no socioeducativo nos últimos anos, considerado em novas obras. Em 2017, a gente tinha um quadro muito grave no estado. Nós chegamos a ter mais de 1.300 adolescentes aguardando na fila de espera para a internação, ou seja, na prática o adolescente cometia um ato infracional, recebia uma sanção, era representado pelo Ministério Público, recebia a sua medida socioeducativa por meio do Poder Judiciário, e isso caía no vazio, porque não havia vaga para aquele adolescente. Desde 2017, nós começamos um trabalho, como eu disse, de parceria, mas também de cobrança do Poder Executivo, por meio de reuniões e, eventualmente, de algumas ações civis públicas que foram propostas por Promotorias de Justiça, sempre nesse trabalho interligado entre o Centro de Apoio da Infância, Promotorias de Justiça e o Poder Executivo estadual. Então nós começamos estabelecendo um sistema de regulação dessas vagas, porque nós começamos a perceber que, considerando que havia falta de vagas para todo o estado, alguns locais acabavam definindo apenas por um critério meramente territorial, ou seja, os adolescentes da comarca “X” podiam entrar naquela unidade; os da comarca “Y”, como não tinha uma unidade lá, teriam que ser transportados para lá, mas não havia vaga, porque eram de uma comarca vizinha. Então nós criamos um sistema de regulação por meio do sistema de pontuação, um critério estritamente objetivo, devolvemos a gestão das vagas para o Estado, que é como a lei do SINASE determina, e com isso nós conseguimos ampliar o número de vagas – algumas ficavam ociosas aguardando um adolescente lá, outro cá – a partir desse sistema de gestão de vagas que hoje é um modelo para o Brasil, vários estados têm replicado esse modelo Brasil afora. Logo em seguida nós avançamos no estado com a ampliação das unidades socioeducativas. Foi inaugurada a unidade de Criciúma, com 60 vagas, nós conseguimos ampliar as vagas na unidade de São José também, na Grande Florianópolis, e mais algumas outras vagas que foram surgindo. Com isso, a gente conseguiu, aos poucos, reduzir esse passivo de 1.300 adolescentes. 

Esse sistema de regulação nos permitiu a construção desse painel de dados, um BI ( do inglês business inteligence), em que a gente pode acompanhar, e acompanha até hoje, semanalmente, a situação das vagas no estado: quais são os atos infracionais praticados; quais são os adolescentes que estão apreendidos e onde estão; e onde são as vagas que são requisitadas. Tudo isso nos permitiu acompanhar e verificar que essas ações que nós havíamos tomado permitiram a redução gradativa desse passivo. De 1.300 a gente passou para 800 e fomos caindo. Mês a mês a gente ia acompanhando e verificando que havia um decréscimo. Quando fizemos o levantamento, por exemplo, para o relatório do CNMP, nós tínhamos cerca de 300 adolescentes na fila de espera, e essa fila de espera foi zerada em meados do segundo semestre do ano passado, em que conseguimos atender a todos os adolescentes.

Fizemos uma grande depuração, inicialmente, dessa lista de espera e, com isso, hoje nós não temos mais nenhum adolescente que cometeu um ato infracional grave, que foi necessário a sua internação, para cumprir medida socioeducativa, aguardando na rua. Isso para internação masculina, que era nosso maior déficit. A mesma sistemática nós aplicamos para a internação feminina. Hoje a gente já tem muito claro, embora não tenha uma fila – isso é muito dinâmico, porque as vagas vão sendo requisitadas diariamente pelas comarcas do estado -, mas hoje a gente não tem adolescentes do sexo feminino aguardando na fila de espera. Mas nós estamos na nossa capacidade máxima, então nós estamos com o sinal de alerta ligado e a gente já está trabalhando com o Estado, o Executivo, para a ampliação das vagas do gênero feminino, assim como as vagas de semiliberdade. Nós temos hoje uma pequena fila de espera, que já foi muito maior, com cerca de 10 adolescentes, para semiliberdade, e a partir dessa demanda a gente já sabe qual é a demanda de fato existente e consegue mais ou menos quantificar, por uma curva tendencial, se é uma demanda momentânea ou permanente. Nesse caso da semiliberdade é uma demanda de fato permanente, e estamos trabalhando com o Estado para que sejam ampliadas as vagas de semiliberdade, o que acreditamos que vai ser feito nesse primeiro semestre de 2020.

A gente venceu, então, nessa questão do diagnóstico, o primeiro gargalo mais importante, que era a falta de vagas. Você não tem como fazer socioeducação se você não tem vaga para o adolescente ser internado. E aí, paralelo a isso, a gente começou a avançar também na qualificação do próprio atendimento socioeducativo.

P: Nas outras áreas?

J.L.C.B.: Também, dos próprios internos dentro das unidades. Não adianta você ter vaga se você não tem agente socioeducativo para acompanhar esses adolescentes, se você não tem um projeto de profissionalização dentro dessas unidades, se você não tem escolarização dentro dessas unidades, não tem saúde… Todas essas frentes geraram uma série de reuniões, demandas e cobranças tanto do Centro de Apoio da Infância quanto das Promotorias de Justiça. Na questão da saúde, por exemplo, há um programa, uma política nacional de atenção à saúde do adolescente em conflito com a lei. Nós fizemos uma gestão, fizemos eventos conjuntos para que os municípios aderissem a essa política. 

Com relação à questão da escolarização, hoje quase 100% dos adolescentes que estão nas unidades socioeducativas estão estudando; os que não estão estudando, isso ocorre apenas porque estão nos primeiros dias de cumprimento da medida e não deu tempo de inseri-los na escola. Mas precisamos qualificar esse atendimento também, então estamos trabalhando com a Secretaria de Educação e com a Secretaria de Administração Prisional e Socioeducativa, para que a gente tenha um currículo adequado a esses adolescentes, para que a gente tenha a garantia de que, quando esses adolescentes deixarem a unidade socioeducativa, continuem estudando, continuem matriculados e frequentando as suas escolas.

Fizemos um trabalho, também, desde meados do ano passado, muito forte com a profissionalização desses adolescentes. Gostaríamos muito que todos os adolescentes saíssem das unidades socioeducativas com um certificado de profissionalização, de técnico em alguma área, alguma profissão, e por que não, até empregados. Nós já temos algumas experiências nesse sentido. Nós precisamos ainda ampliar e qualificar o atendimento para evitar reincidência, para evitar que esses adolescentes continuem envolvidos com a criminalidade e que a gente possa, então, cumprir o que diz a própria lei do SINASE. A lei estabelece que a medida socioeducativa tem algumas funções, entre elas a reintegração social do adolescente a partir do cumprimento dos objetivos que estão previstos no Plano Individual de Atendimento (PIA). Para cada adolescente é feito um PIA, um plano que contempla questões de saúde, educação, familiares, de profissionalização… 

Tudo isso nós colocamos no papel e queremos que seja cumprido, para que tenhamos os adolescentes de fato reintegrados à sociedade, que ressignifiquem as suas condições de vida para que não reincidam na prática infracional.

P: Para encerrar, que aprendizado o MPSC leva dessa experiência da Lava Jato com a destinação dos recursos para outras áreas que não aquelas diretamente atingidas pela corrupção?

J.L.C.B.: Eu acho que foi uma experiência muito rica no sentido de conseguir mobilizar toda uma rede que se iniciou a partir lá da possibilidade de nós termos um grupo de trabalho no Conselho Nacional do Ministério Público. 

Isso foi muito importante, porque os Ministérios Públicos estaduais geralmente têm uma interlocução muito distante com o Governo Federal, então o CNMP veio para preencher essa lacuna. Esse grupo de trabalho que continua se reunindo hoje tem desempenhado um papel muito importante. E conseguir mobilizar esse grupo de trabalho, levar isso à Procuradoria-Geral da República, conseguir sensibilizar a Procuradora-Geral da República, que foi muito sensível à causa, conseguir levar isso até o Supremo Tribunal Federal, enfim… Foi todo um trabalho em rede, mesmo, com muitas mãos, e que a gente teve a felicidade de participar e conseguir fazer com que esses recursos que foram retirados da sociedade por atos de corrupção, por atos ilícitos, estejam retornando para a sociedade.

para que a gente tenha uma sociedade mais segura, para que a gente tenha adolescentes que de fato cumprirão as suas medidas socioeducativas. não ficarão na lista de espera aguardando, e com isso a gente tem também medidas que são preventivas, que não deixam de ser preventivas.

P: Por exemplo, mesmo ele já tendo cometido uma infração, a atuação nesse caso é preventiva, porque se evita que o adulto seja um criminoso.

J.L.C.B.: Exatamente. Deve-se sempre considerar que a medida socioeducativa não é pena: ela não está ali para punir o adolescente. Claro que ela tem um caráter sancionador, e a própria lei do SINASE determina que tenha um caráter de desaprovação daquela conduta. 

O adolescente tem que entender que ele fez algo que fez mal para alguém, mas a medida socioeducativa não é pena. A medida socioeducativa tem um caráter muito mais de reintegração social do adolescente, um caráter preventivo mesmo, para que o adolescente que cometeu esse ato infracional tenha de fato um atendimento adequado, para que, quando ele retorne para a sociedade – porque vai retornar -, ele tenha os seus direitos garantidos e assegurados, porque geralmente esses adolescentes que entram nas unidades socioeducativas sofreram uma série de violações desses direitos.

Eles não têm uma educação de qualidade, não tiveram uma saúde adequada, convivência familiar e comunitária muito precária, então há uma série de direitos sonegados desses adolescentes que acabaram levando ao cometimento do ato infracional. Então a ideia é resgatar esse adolescente, colocá-lo novamente na escola, é claro, mas recuperando seus potenciais de saúde, seus potenciais criativos, e que ele saia de lá pronto para enfrentar os desafios da sociedade sem precisar recorrer à criminalidade. Isso tem um caráter preventivo tanto para esses adolescentes que cometeram o ato infracional e já cumpriram a sua medida como para aqueles que ainda não cometeram um ato infracional mas que sabem que, se cometerem, receberão uma sanção do estado.

P: Ele tem que saber que é melhor conviver com a sociedade do que contra ela, né?

J.L.C.B.: Sem dúvida, é claro que a gente gostaria que não fosse necessário aplicar nenhuma medida socioeducativa para nenhum adolescente, mas às vezes, de fato é, e isso é um mito que temos que quebrar, que não acontece nada com o adolescente que comete ato infracional, e pelo contrário, recebe uma sanção, claro que adequada à sua idade, ao seu perfil, mas ele recebe uma sanção. Pode ser privada a sua liberdade, como é o caso do regime fechado. Agora é claro que a gente não pode olhar apenas para o meio fechado. 

Temos que olhar para o adolescente que cometeu o ato infracional mais leve e que tem que receber medida socioeducativa em meio aberto, como a gente chama, que é responsabilidade dos municípios. Os municípios têm que estar preparados também para evitar que esse adolescente prossiga na sua trajetória infracional e vá eventualmente cometer um ato mais grave, e aí será necessária a sua internação, assim como outras medidas preventivas, antes mesmo de o adolescente cometer a infração. Então, antes do meio fechado e do meio aberto, o adolescente está na escola, então combater a evasão escolar, como no caso do Programa Apoia, também é uma medida preventiva.

Quando a gente trabalha o cumprimento dos planos municipais de educação, que pretende dar mais qualidade para a educação daqui de Santa Catarina, os municípios e o Estado, isso também é uma forma de evitar que esses adolescentes, esses alunos, deixem a escola e sejam um alvo fácil para organizações criminosas, para eventualmente a prática de atos ilícitos, então é claro que o melhor investimento é sempre na prevenção. Nesse caso do meio fechado, a nossa atuação tem um caráter preventivo e também resolutivo, porque nós vencemos esse gargalo, ultrapassamos esse gargalo de falta de vagas e ainda temos um enorme desafio pela frente, que é, embora tenhamos avançado nos últimos anos, ter um atendimento socioeducativo muito qualificado, que é o que a gente pretende implementar aqui no estado com base nesses recursos que vão permitir uma estrutura física das unidades muito mais adequada do que temos hoje, com mais salas de aula, com mais espaço para profissionalização. Então a prevenção e a “repressão”, digamos assim, estão juntas.

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