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SANTA CATARINA – Chefe do MPSC fala sobre o trabalho da Instituição no enfrentamento à pandemia de covid-19

Passados mais de 40 dias desde as primeiras medidas administrativas para evitar o agravamento da pandemia de covid-19, o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) já tem mais de 1.800 procedimentos instaurados em relação ao tema. Mudanças no formato de trabalho, posicionamentos contundentes e uma rotina constante de plantão marcam o dia a dia da Instituição, que tem à frente o Procurador-Geral de Justiça, Fernando da Silva Comin.

Em entrevista concedida na última quinta-feira (30/4), Comin falou à equipe de jornalistas da Coordenadoria de Comunicação Social (COMSO) sobre o trabalho que vem desenvolvendo desde o início do enfrentamento ao novo coronavírus. De lá para cá, a Instituição depara com decisões importantes, que vão desde o acompanhamento das medidas de distanciamento social a fatores que envolvem a saúde e a economia do Estado de Santa Catarina, além da fiscalização de atos administrativos.

Conhecido na Instituição por sempre buscar ouvir os pares e todas as partes envolvidas no processo, Comin destaca o trabalho bem-articulado do Gabinete Gestor de Crise, que tem dado celeridade às decisões da Instituição. Entende que, para diminuir os impactos da pandemia, é necessário um trabalho de gestão interna e também de coesão entre todos os Poderes. Quanto ao futuro, tem esperança: “Eu acredito que nós estamos navegando bem até aqui nesse mar de incertezas que se chama coronavírus.”

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

Pergunta: Já são mais de 1.800 procedimentos instaurados desde o início do enfrentamento à pandemia. Qual tem sido a linha de atuação do MPSC no enfrentamento à covid-19?

Procurador-Geral de Justiça, Fernando da Silva Comin: 

“O Ministério Público de Santa Catarina, nesse combate à pandemia, tem procurado agir em duas frentes, duas grandes linhas de trabalho. A primeira delas é acompanhando a política de proteção sanitária no estado, e isso significa ter acesso a todas as informações, ao diagnóstico e aos dados que são responsáveis pela construção da modelagem epidemiológica do estado, acompanhar dia a dia o crescimento da curva epidemiológica e, a partir daí, as tendências da propagação da doença no estado e, com isso, estarmos atentos à evolução da doença no estado, dando suporte às medidas de proteção definidas pela autoridade sanitária, às medidas próprias da quarentena, às restrições, às atividades. Essa é uma linha de atuação do Ministério Público, de acompanhamento da política pública. Uma outra linha de atuação é a de fiscalização do poder público. Os atos administrativos que têm ocorrido neste momento de alguma maneira podem ser flexibilizados nas suas formalidades não essenciais, mas é preciso ressaltar a obrigação do gestor neste momento de acautelar o poder público e o orçamento público, evitando despesas desnecessárias ou a prática de atos que possam comprometer o interesse público e o próprio erário.”

Então, o Ministério Público exerce uma função colaborativa, vamos dizer assim, junto às demais instituições no combate a essa pandemia, orientando a sociedade, o poder público, os prefeitos, os gestores públicos, participando e acompanhando o comportamento do cenário epidemiológico no estado, agindo na defesa das medidas de quarentena, na fiscalização das condicionantes, das medidas mitigadoras do funcionamento do comércio e das atividades do setor produtivo e da indústria e, por outro lado, exercendo o seu papel de órgão de controle na fiscalização do cumprimento da lei e na regular aplicação dos recursos públicos no combate à pandemia. Então eu diria que a atuação do Ministério Público pode ser dividida nesses dois grandes grupos de atuação.

P: A Constituição Federal é clara: os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si. Diante disso, o Ministério Público de Santa Catarina tem atuado de forma colaborativa, mas independente. O que isso significa na prática?

F.S.C.: Na prática, o que tem ocorrido, e é preciso termos consciência de que [se trata de um] momento de pandemia, de emergência de saúde e de importância internacional, os Poderes têm que agir de maneira convergente à obtenção de um resultado, que é a proteção da saúde das pessoas. Isso significa que todos os Poderes têm responsabilidade nesse processo e devem agir de maneira a construir as melhores decisões e as melhores soluções, que possam manter a segurança da vida e da saúde das pessoas de um lado e, também, o funcionamento máximo possível das atividades, para que não haja uma crise econômica que acabe tendo proporções ainda piores do que a própria pandemia. Nesse contexto, há uma obrigação institucional de solidariedade, de colaboração. Cada órgão tem que prestar a sua parcela de contribuição nessa guerra, mas, por outro lado, as instituições têm os seus papéis definidos constitucionalmente, e cada uma delas tem uma missão clara. 

“Não se pode confundir a obrigação de solidariedade institucional que o momento exige com o não exercício das funções que cada Poder, órgão e instituição tem diante da Constituição. O Ministério Público tem agido de maneira colaborativa, por exemplo, quando utiliza o seu Gabinete Gestor de Crise para encaminhar estudos e orientações aos gestores públicos de maneira a prevenir a ocorrência de irregularidades administrativas. O Ministério Público também cumpre o seu papel constitucional quando ajuíza ações que buscam o ressarcimento ou a responsabilização de atos ilícitos que ocorrem nesse período, porque é muito comum num período como esse a prática de atos abusivos, como o aumento abusivo de preços ou a tentativa de obtenção de lucros exagerados no fornecimento de bens e serviços para o estado. Aí é que está o papel dos órgãos de controle: compreender o que faz parte da lógica de escassez do mercado e o que desborda esse momento para poder ser qualificado como um ato ilícito e até mesmo criminoso.”

P: Desde o início da pandemia até agora, já passamos por algumas fases em relação ao enfrentamento da doença. Podemos identificar essas fases, de forma breve, e como o MPSC atuou ou vem atuando em cada uma?

F.S.C.: O Ministério Público de Santa Catarina instituiu o Gabinete Gestor de Crise antes mesmo do primeiro caso de covid-19 em Santa Catarina. A partir de então, nós temos nos reunido diariamente, não só o Gabinete Central de Gestão de Crise, mas também com os Promotores de Justiça que fazem parte e são os representantes regionais desse Gabinete de Gestão de Crise, e temos atualizado sempre a classe da atuação da Instituição nesse período. A gente pode dividir em três grandes fases. A primeira dá a imposição das medidas de quarentena. Nós não podemos dizer que Santa Catarina viveu propriamente o lockdown; viveu a imposição de medidas de quarentena de isolamento social. O lockdown é uma medida ainda mais restritiva do que o isolamento social. Naquele momento, o Ministério Público foi chamado pelo Governo do Estado juntamente com os demais Poderes a acompanhar a exposição do cenário, que ainda era uma incógnita. Ainda estavam surgindo os primeiros casos no Brasil, Santa Catarina estava ainda com casos importados, digamos assim, e a partir do primeiro contágio comunitário, então, foi necessária a adoção dessa política mais restritiva. O Ministério Público compreendeu as razões e apoiou evidentemente a decisão da autoridade sanitária, porque é ela quem dispõe de todos os dados e informações e conhecimento para saber quais são as melhores estratégias de saúde nesse momento. Logo na sequência, após a quarentena e pouco tempo depois, houve uma sinalização de retomada das atividades econômicas por meio de um plano de retomada econômico. Houve um anúncio, mas não foi colocado em prática. Nós nos preocupamos com essa retomada e buscamos uma interlocução com o estado no sentido de que essa retomada fosse acompanhada de alguns requisitos: primeiro, de uma análise do cenário epidemiológico mais precisa, mais clara; segundo, de normas de regramento dessas atividades, redução do número de circulação de pessoas em ambientes fechados, uso de máscara, álcool em gel, enfim, e também de que maneira e quem faria a fiscalização dessas normas. A partir daí a gente percebeu um aumento progressivo, de uma flexibilização progressiva nas normas restritivas com o estabelecimento concomitante de normas de funcionamento de cada setor, comércio, indústria, restaurantes, bares, academias, templos e cultos religiosos. Agora a gente vive uma outra fase, e, a partir do monitoramento da curva epidemiológica, é esperado que essa abertura, ainda que regulada por normas de funcionamento, promova o aumento do número de casos e, obviamente, o aumento do número de pacientes que necessitem de leitos no sistema de saúde. O papel do Ministério Público agora é, juntamente com os demais órgãos envolvidos na política, acompanhar essa ascensão e, ao mesmo tempo, fiscalizar o funcionamento dessas normas das atividades. A partir do momento em que essa curva demonstrar uma ascensão para um segundo cenário¿ Hoje nós estamos num cenário moderado; a curva de crescimento epidemiológico está dentro de uma lógica moderada.Quando a gente alcançar ou apontar para um cenário superior, o nível mais preocupante não o terceiro nível, que esse é o nível mais gravoso da curva epidemiológica, mas um segundo nível, então talvez outras medidas sejam necessárias, porque a lógica é sempre balancear o número de casos, o número de contagiados, o número de sintomáticos e o número de pessoas que precisam de leitos de UTI com a capacidade do sistema de saúde. Como o nosso sistema de saúde é um dos menos congestionados, digamos assim – nós temos em torno de 16% a 17% de taxa de ocupação -, nós temos condições agora de observar atentamente a abertura, fiscalizar as atividades, conscientizar a população das medidas que são necessárias e acompanhar a curva epidemiológica. Esse é o papel do Ministério Público nessa, digamos, terceira fase da pandemia.

P: No gerenciamento de toda esta atuação, o senhor conta com um Gabinete Gestor de Crise, que tem subdivisões. Como ele é formado e como tem sido a rotina da equipe?

F.S.C.: O Ministério Público tem aprendido a se reinventar na sua forma de atuação a cada crise. Nós vivemos há um pouco mais de dez anos as enchentes aqui em nosso estado. Naquele momento, o Ministério Público teve uma atuação importante no auxílio ao estado em diversas medidas. Eu me recordo da atuação de uma equipe do Ministério Público que inclusive resgatou famílias do Morro do Baú quando nós vivemos aquele momento de desastre ambiental. Na sequência, a segunda grande crise foi aquela onda de ataques das organizações e facções criminosas a prédios públicos, a ônibus, a autoridades públicas. O Ministério Público também nesse momento teve que se organizar numa espécie de Gabinete de Gestão de Crise para ações coordenadas com os órgãos de segurança pública. Uma terceira crise importante e que faz parte da história recente da Instituição foi a greve dos caminhoneiros, em que o Ministério Público mais uma vez instituiu o seu Gabinete de Gestão de Crise e, juntamente com a Defesa Civil e os demais órgãos, teve uma atuação destacada e contribuiu bastante para soluções importantes desse processo. Agora nós vivemos a crise do coronavírus, e toda essa experiência de todas essas crises foi fundamental para que hoje nós pudéssemos dar respostas rápidas a partir desse Gabinete de Gestão de Crise. Esse gabinete é formado por diversos membros – Procurador-Geral, Subprocuradores, Secretário-Geral, Membros da nossa equipe da Administração Superior e colegas que são convidados a integrar esse grupo. Ele tem braços regionais, com representações das 23 circunscrições do Ministério Público, e nós temos nos reunido diariamente desde o dia 12 de março, aos sábados, domingos, feriados, às vezes mais de uma vez por dia. Esse gabinete tem procurado interagir e fazer a interlocução com diversos órgãos que estão sendo importantes nesse processo, não só órgãos do estado – Defesa Civil, Secretaria de Saúde, de Segurança Pública, Secretaria da Administração (o próprio Governador já participou de reuniões do nosso Gabinete de Gestão de Crise) -, mas também com entidades representativas do setor produtivo. Tivemos reuniões com a FIESC e com outras entidades, com a Associação Catarinense de Medicina e com a comunidade científica, a comunidade acadêmica, que tem nos auxiliado a compreender melhor esse fenômeno tão desconhecido e que está se revelando na prática, no dia a dia, e todos nós estamos tendo de alguma maneira que reinventar a nossa forma de agir, de atuar, de viver no nosso cotidiano, na nossa rotina em virtude dessa realidade que se impôs ao mundo inteiro. O Gabinete de Gestão de Crise é dividido em grupos de trabalho. Nós temos um grupo de trabalho responsável por ações administrativas e de Tecnologia da Informação, um responsável por ações de execução na área finalística, de apoio às Promotorias de Justiça, um responsável pelo relacionamento institucional e a comunicação social e um responsável pela segurança institucional. Cada grupo de trabalho é composto por alguns membros do Gabinete de Gestão de Crise, e a grande virtude desse modelo é que nós temos conseguido dar respostas rápidas e inclusive nos anteciparmos a muitos problemas que nós já conseguimos antever nesse processo – que é um processo longo, porque nós temos também um representante do Ministério Público no Grupo de Ações Coordenadas da Defesa Civil, que é, digamos assim, o braço operacional do Gabinete de Gestão de Crise do estado, e nós temos também um representante no grupo econômico, que acompanha toda a pauta do setor produtivo, do setor econômico, na definição dessas regras, e nós temos também um representante do COES, que é um órgão central de decisão da política de saúde. 

“É bom deixar sempre claro: esses representantes do Ministério Público que acompanham os trabalho que está sendo feito nessas diversas instâncias não participam de qualquer decisão; eles simplesmente acompanham o trabalho que está sendo realizado e têm autonomia para fazer sugestões e recomendações de como esse trabalho pode ser mais adequado à lógica de controle do Ministério Público. Então, a função do Ministério Público é estar presente, tentando contribuir com a tomada da melhor decisão e com a segurança do processo decisório e ao mesmo tempo trazendo informações ao Ministério Público em tempo real, que são importantes para a gente dimensionar a nossa estratégia de atuação como instituição, na área finalística, em cada Promotoria, em cada região, diante de cada problema que se coloca.”

Desde os problemas de saúde propriamente, de desabastecimento – a gente vive uma crise não só de saúde, mas uma crise logística, em que os insumos, equipamentos, respiradores estão em falta no mercado internacional, e isso produz obviamente reflexos nas contas públicas. Aí há inflexões na área da moralidade administrativa, mas também há, por outro lado, na área do consumidor, com o aumento abusivo de preços, e as relações de consumo, que são modificadas de uma hora para outra. Tudo isso, todo esse mosaico de novos fenômenos tem sido discutido, amadurecido dentro do Gabinete de Gestão de Crise, com o propósito de subsidiar a atuação dos Promotores de Justiça mediante o encaminhamento de modelos de peças, de ações, de recomendações, de ofícios, de notas técnicas. Toda a razão de ser do grupo desse Gabinete Gestor de Crise é fortalecer a atuação da ponta do Promotor de Justiça.

P: No Gabinete Gestor de Crise, há um grupo que se ocupa especialmente sobre as questões que se refletem lá na ponta, no trabalho da Promotorias. É o Grupo de Apoio à Execução. O que faz exatamente esse grupo e como reflete nas Promotorias de Justiça?

F.S.C.: O GT de execução é o grupo que mais proximamente se relaciona com os colegas nas Promotorias, que estão lá na linha de frente. A grande vantagem dessa comunicação rápida é que nós conseguimos criar um canal de diálogo muito fácil com quem está lá na ponta, vivenciando as dificuldades e as experiências na prática, trazendo esses problemas. Esses problemas são estudados dentro do GT, às vezes até com a colaboração de órgãos externos, Tribunal de Contas, a própria Secretaria de Saúde, Secretaria de Segurança Pública, e nós podemos devolver propostas de atuação, informações ou modelos de atuação para o colega que está vivenciando o problema concreto na sua atuação como órgão de execução. Esse modelo tem se mostrado um modelo muito eficiente de trabalho, e nós temos tido um feedback muito positivo dessa interação, tanto do Gabinete Gestor com a classe, quanto do grupo de trabalho da execução com a classe, quanto da classe com o GT, nessa interação bidimensional, vamos dizer assim, e isso tem feito com que o Ministério Público esteja conseguindo dar respostas rápidas e eficientes aos mais variados problemas que tenham surgido ao longo desse processo complexo, difícil e dinâmico que é uma pandemia como nós nunca havíamos vivenciado.

P: A situação de emergência prevê a flexibilização de compras emergenciais, mas temos dois casos emblemáticos em que há indícios de irregularidades – o hospital de campanha em Itajaí e a compra de 200 respiradores. Como o MP está atuando nesses dois casos e como os gestores devem atuar em compras emergenciais?

F.S.C.: O Ministério Público, assim como os demais órgãos de controle, tem consciência de que nós vivemos um momento crítico não só nos cenários estadual e nacional, mas internacionalmente. Há uma crise, uma escassez do mercado clara de equipamentos, de EPIs, de insumos, de testes, e isso promove alterações no mercado, nos preços dos produtos, nas condições de entrega, de maneira que, atenta a esse fenômeno global, a Lei 13.979 estabeleceu a possibilidade de algumas flexibilizações de formalidades não essenciais dos processos de compra, no sentido de dar mais celeridade a essas compras para que os sistemas de saúde possam se aparelhar o mais rapidamente possível para enfrentar essa pandemia. O Ministério Público e os órgãos de controle, a partir dessa flexibilização que é autorizada pela lei, tem editado orientações aos gestores no sentido de que algumas formalidades podem ser relativizadas desde que sejam adotadas algumas outras medidas de cautela. Eu me refiro, por exemplo, às compras com antecipação de valores. Nós sabemos que muitos dos equipamentos – os respiradores, os testes, os insumos, os equipamentos necessários ao combate à pandemia – vêm do mercado chinês. O mercado chinês trabalha numa lógica diferente da lógica da lei de licitação brasileira. Na lei de licitações nós temos as etapas de empenho, pagamento e liquidação. O mercado chinês trabalha numa lógica reversa, ou seja, você primeiro paga para depois receber o produto, mas mesmo assim existem medidas que podem ser adotadas para minimizar o risco do estado nas contas públicas. Então, uma antecipação de recursos para compra emergencial neste momento por si só não é uma irregularidade capaz de gerar a anulação dessa despesa, desde que ela seja feita com algumas cautelas, como, por exemplo, a fixação de uma garantia nessa transação, uma garantia real, uma carta-fiança ou um seguro. Ainda que haja um leve incremento no valor do bem ou serviço, isso se justifica; é justificável que o estado opte por um aumento adequado no valor da contratação, mas que assegure que aquele bem ou serviço vá ser efetivamente prestado. Nós tivemos casos emblemáticos aqui envolvendo compras que não foram adequadas. Uma delas é a questão do hospital de campanha, os 100 leitos do hospital de campanha. Posteriormente à identificação das irregularidades no processo, o próprio Executivo anulou essa contratação. E agora a mais recente polêmica é a contratação dos 200 respiradores. Uma compra em que, em um primeiro momento, a gente pode identificar que foram desprezados inúmeras cautelas e formalidades necessárias a trazer segurança a essa operação. Isso porque houve a antecipação de R$ 33 milhões por parte do estado, sem a tomada de qualquer garantia, por uma empresa que não pode ser que tenha experiência no mercado. Não houve qualquer preocupação no sentido de averiguar se a empresa teria efetivamente condições de entregar os respiradores ou, não o fazendo, de ressarcir o prejuízo, e hoje nós temos aí um atraso significativo de entrega dos bens e uma grande dúvida quanto à capacidade da empresa de honrar o compromisso que assumiu com o estado, com o agravante de que os R$ 33 milhões foram transferidos. Então o 

“Ministério Público vai agir e já está agindo, promovendo todas as medidas necessárias para salvaguardar o patrimônio público e responsabilizar todos os intervenientes nessa operação a partir de uma investigação meticulosa, detalhada, uma ação firme e rápida que se espera do Ministério Público no processo. É isso e é assim que nós vamos agir.”

P: O enfrentamento à pandemia trouxe à tona o debate saúde versus economia, como se fossem frente opostas. Qual é a posição do MPSC nesse debate?

F.S.C.: A posição do Ministério Público de Santa Catarina é no sentido de que são valores constitucionais perfeitamente conciliáveis. É evidente que, no embate direto entre a economia e a vida das pessoas, nós temos a preponderância da vida com o bem maior tutelado pela ordem constitucional. Agora, nós podemos fazer a defesa da vida de maneira eficiente, a defesa da saúde pública, o combate da pandemia, sem aniquilar financeiramente e economicamente o estado. Isso é possível, e nós achamos que Santa Catarina caminha de maneira adequada no tratamento dessa ponderação entre esses dois valores, que é justamente criando diretrizes e normas de como deve se dar o funcionamento da indústria, do comércio e das atividades de uma maneira segura, de acordo com aquilo que já é conhecido em termos de medidas de prevenção ao crescimento dos casos de coronavírus no nosso estado. Então há um monitoramento da capacidade do nosso sistema de saúde e do funcionamento dessas atividades – quanto essas atividades impactam em termos de circulação de pessoas, de aglomeração de pessoas, de número de casos, de velocidade de transmissão, de contágio do vírus, que tecnicamente é expressa na sigla RX. Nosso RX era 3 antes das medidas restritivas e passamos para 1,5, aproximadamente, o que significa que, no começo da pandemia, cada pessoa tinha a capacidade de transmitir a 3 pessoas. Nós conseguimos baixar pela metade, para 1,5. Depois o estado foi gradativamente abrindo e restabelecendo algumas atividades de maneira regrada e esse índice subiu para 1,76. Ainda não podemos dizer que é um índice ideal, mas é um índice de atenção, mas a nossa capacidade de absorção do sistema de saúde era alta, com a taxa de ocupação baixa, em torno de 16,2%. Então agora o que vai ocorrer? Nós tendemos a constranger mais o sistema de saúde com o aumento da taxa de ocupação. O aumento da velocidade de transmissão aumenta diretamente a taxa de ocupação, e o estado vai, então, por meio de medidas de controle das atividades, fazer o equilíbrio entre esses dois valores. Essa é a prova de que na prática é possível conciliar, porque o ideal seria um lockdown geral? Não seria. E por que não seria? Porque todos nós vamos ter que ser infectados. Enquanto não houver uma vacina para o vírus, a única forma de combatermos de maneira eficiente é com as pessoas contraindo o vírus, ficando em isolamento, criando a imunização e restabelecendo a sua vida em sociedade. O que nós temos que evitar é que todos sejam contaminados ao mesmo tempo, porque isso provocaria a falência do nosso sistema de saúde diante da impossibilidade de absorção de tanta demanda. Então esse caminhar, “toda essa ciência que se desenvolveu em torno da pandemia é algo que desafia os próprios estudiosos, mas o que nós percebemos é que Santa Catarina tem adotado medidas fundamentadas, medidas que são adequadas ao nosso cenário, e a população precisa também fazer a sua parte se comprometendo com esses protocolos de segurança. Dessa forma, eu acredito que economia e saúde não serão pautas antagônicas em nosso estado.”

P: O que o MPSC tem feito, em todo o estado, em defesa da população que mais sofre as consequências das restrições atuais por conta da covid-19?

F.S.C.: A população mais carente, que precisa de medidas de socorro no pagamento das suas contas, o estado está se ocupando de políticas que deem segurança a essas pessoas no pagamento das suas contas. O Ministério Público tem recomendado a não aplicação de juros para essas obrigações, o prolongamento do pagamento. A questão das mensalidades escolares: as crianças estão tendo aula em casa. Algumas crianças não estão tendo aula. Quem tem direito, em que condições, de que forma pode exigir, isso tudo tem sido objeto de estudos dentro do Gabinete de Gestão de Crise e informado aos Promotores de Justiça e à sociedade em geral, e isso tem sido importante no esclarecimento de como as pessoas devem se portar e quais os direitos que elas podem defender nesse momento crítico, nesse momento de exceção como uma pandemia. Nós sabemos que essa é uma doença que veio do exterior, portanto ela iniciou a transmissão no nosso país pelas classes mais abastadas, e uma das nossas preocupações é que agora as classes menos favorecidas estão começando a ser atingidas pela doença. Isso é um fenômeno que o mundo não experimentou ainda: um contágio, uma pandemia de um vírus com um poder muito intenso de contaminação, num ambiente de uma favela, por exemplo. As favelas não existem na Europa, não existem no Reino Unido, não existem em outros países em que o vírus está sendo estudado e as estratégias de saúde, também. Então a nossa atenção vai agora para esse momento, como a partir de agora vai se comportar o nosso sistema de saúde quando a pandemia atingir justamente esses grandes bolsões de moradias populares, as classes menos abastadas, que já sofrem os efeitos da paralisação das atividades econômicas. Os trabalhadores informais já vivem diretamente um efeito da crise, então o Ministério Público está muito atento a esse próximo momento, a esse próximo passo, buscando compreender de que maneira a gente possa atuar para salvaguardar melhor o direito dessas pessoas mais carentes.

P: Dentro desse contexto, como está o seu dia a dia aqui na Procuradoria?

F.S.C.: É cansativo, bem cansativo. A gente tem trabalhado muitas horas diárias, dia e noite, final de semana, feriado. Quase todos os dias nós temos que resolver problemas diferentes que se colocam nesse cenário dinâmico, nessa realidade que é fluida, de respostas difíceis, e isso tem exigido bastante da equipe, tem exigido bastante dos Promotores no interior e não tem sido uma tarefa fácil. Por outro lado, o que nos anima, o que nos fortalece é ver que o Ministério Público está cumprindo o seu papel, o Ministério Público está agindo na defesa da sociedade, o Ministério Público está agindo no controle da Administração, no controle da política pública, no acompanhamento das estratégias de saúde. O Ministério Público hoje é um protagonista importante desse processo, e essa é a missão do Ministério Público. É a missão de defender aquele que não pode se defender, de representar aquele hipossuficiente, de ser a voz daquele que quer questionar e não pode, de ser parceiro do poder público, mas de fiscalizar e agir com firmeza nos erros que são cometidos, nos ilícitos que são praticados, de maneira que eu vejo hoje o Ministério Público diante de um grande momento, uma grande oportunidade de mostrar a sua verdadeira vocação para a sociedade. 

“Então, apesar do cansaço, apesar das críticas, porque hoje nós vivemos numa sociedade extremamente complexa, exigente, e é inegável que há uma politização e até uma espécie de ideologização do discurso em torno do que a gente vive hoje no nosso país, que é muito prejudicial para todos nós, para a sociedade, para o poder público, para a iniciativa privada, para o brasileiro como nação, e torna as coisas ainda mais difíceis. A politização e a ideologia de um discurso num momento como esse é algo que deve ser evitado a todo custo, e o Ministério Público felizmente tem passado ao largo dessas percepções antagônicas e tem realizado um trabalho isento, independente e fundado em dados técnicos, fundado na nossa realidade de defesa da sociedade. Isso me orgulha, engrandece a instituição e engrandece todos os Promotores do nosso estado.”

P: Quais as suas perspectivas na luta pela defesa dos direitos constitucionais do catarinense?

F.S.C: As nossas perspectivas são muito positivas. Eu vejo que, em se tratando de uma estratégia de combate à pandemia mundial, Santa Catarina tem se destacado, não só porque foi um dos primeiros estados a decretar a quarentena, sete a quinze dias antes de muitos outros estados, e isso provou a importância de se frear naquele momento a curva ascendente de contágio, mas também por ter hoje instituições que estão agindo de maneira solidária e integrada, fiscalizando as regras que foram postas para que a gente pudesse conciliar a estratégia de ação de saúde com a economia, com a retomada gradual e em segurança de setores da indústria e do comércio, para que a gente pudesse privilegiar nem um nem outro desses valores, porque a medida tem que ser uma balança. Nós temos que ter um equilíbrio. Acho que Santa Catarina está dando exemplo, e a prova disso são os indicadores que estão aí: é o terceiro estado com o menor índice de taxa de ocupação do sistema de saúde, é o estado que retomou as atividades econômicas… Claro que isso tem que ser monitorado dia após dia, mas com segurança. Nós tivemos uma reunião com a Polícia Militar recentemente, e nos últimos 15 dias mais de 10 mil fiscalizações foram feitas pela Polícia. As instituições se comunicam. Houve a delegação do poder de vigilância sanitária à Polícia Militar, Civil e ao Corpo de Bombeiros, e esses agentes, juntamente com a sociedade, têm sido responsáveis pela fiscalização dessas atividades. Mais do que isso, 

o DNA do povo catarinense é um DNA de responsabilidade e de solidariedade. As pessoas estão conscientes de que, ao sair para caminhar na rua, têm que usar máscara; ao se deslocarem para o mercado, têm que passar o álcool em gel e usar máscara. A educação do povo catarinense e o seu DNA nessa trajetória de lutas e conquistas dos nossos ancestrais fizeram do catarinense um povo diferente, um povo que construiu um estado diferente. Hoje, graças a esses valores, eu acredito que nós estamos navegando bem até aqui nesse mar de incertezas que se chama coronavírus.

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