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SANTA CATARINA – Municípios não podem bloquear integralmente a entrada e saída de pessoas e veículos de seus territórios para impedir a propagação do coronavírus

Diante das notícias amplamente divulgadas pela imprensa e redes sociais de que vários municípios catarinenses determinaram bloqueios generalizados nos acessos a seus territórios como forma de conter o avanço do novo coronavírus, o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) analisou a situação em seu Gabinete Gestor de Crise e definiu orientações para que os prefeitos não cometam excessos e ilegalidades na execução das medidas restritivas previstas nos Decretos Estaduais 509 e 515, de 17 de março, que colocou Santa Catarina em Estado de Emergência de Saúde Pública.

A principal orientação é de que os bloqueios generalizados que impedem completamente a entrada e a saída dos territórios municipais de todos os meios de transporte de cargas e pessoas, individuais e coletivos, bem como a livre circulação de pessoas e serviços entre os limites municipais, não encontram base legal nem mesmo nessa situação de emergência.

O que é permitido por lei, por exemplo, são barreiras sanitárias montadas com equipes de profissionais da área da saúde – podendo ser amparadas por forças públicas de segurança, como Polícia Militar ou Guarda Municipal – que fiscalizem a circulação de pessoas, bens e serviços a fim de reduzir os riscos de contágio ou impedir o ingresso ou a saída de pessoas e produtos que ofereçam o risco de contágio.

Um exemplo de barreira possível de ser implementada, tanto nos limites municipais quanto nas vias públicas da cidade, é  o que é conhecido popularmente como blitz, mas, no caso específico, para o de combate e prevenção ao novo coronavírus: agentes sanitários e de saúde, com apoio de força policial, podem examinar as pessoas para verificar se apresentam sintomas compatíveis com a doença, inclusive medindo a temperatura corporal para identificar se ela está com febre, por exemplo.

As medidas de isolamento ou tratamento em hospital devem ser determinadas por profissional médico ou autoridade sanitária. Se estiverem presentes no local, o fazem diretamente, do contrário, o cidadão deve ser encaminhado para a Unidade Básica de Saúde para avaliação.

Independentemente do método empregado ou do tipo de bloqueio, “a adoção de tais providências não pode exceder os regramentos previstos para a defesa sanitária local, sendo inviável, por exemplo, a adoção de medidas drásticas, como a limitação de acesso territorial aos Municípios, circunstância incompatível com o exercício da autonomia municipal, por afetar serviços fornecidos pelo próprio Estado de Santa Catarina, de forma regionalizada (como, especialmente, o serviço de saúde)”, salienta a orientação do Grupo de Trabalho de Apoio aos Órgãos de Execução do Gabinete Gestor de Crise do MPSC.

Essa orientação foi enviada aos Promotores de Justiça de todas as comarcas,  com informações técnicas para auxiliá-los na aplicação dos procedimentos necessários nos casos de excessos.

Por sua vez, o Procurador-Geral de Justiça, Fernando da Silva Comin, enviou ofício ao Presidente da Federação Catarinense de Municípios,  à Polícia Militar e à Polícia Civil contendo as orientações expedidas pelo Ministério Público de Santa Catarina. 

Abaixo, as orientações do Grupo de Trabalho de Apoio aos Órgãos de Execução do gabinete Gestor de Crise do MPSC.

ORIENTAÇÃO SOBRE DECRETOS MUNICIPAIS QUE PREVEEM MEDIDAS RESTRITIVAS À CIRCULAÇÃO DE PESSOAS

Como sabido, o Estado de Santa Catarina se encontra em situação de emergência, declarada pelo Governador do Estado de Santa Catarina pelos Decretos n. 509 e 515, de 17 de março de 2020, circunstância que passou a impor, de forma extraordinária, porém legal, limitações às liberdades e garantias constitucionais dos cidadãos catarinenses.

Natural, nesse cenário, que, atentos às peculiaridades locais, os Prefeitos Municipais adotem medidas específicas de proteção à população local, a fim de evitar a propagação da pandemia. Todavia, a adoção de tais providências não pode exceder os regramentos previstos para a defesa sanitária local, sendo inviável, por exemplo, a adoção de medidas drásticas, como a limitação de acesso territorial aos Municípios, circunstância incompatível com o exercício da autonomia municipal, por afetar serviços fornecidos pelo próprio Estado de Santa Catarina, de forma regionalizada (como, especialmente, o serviço de saúde).

Assim, ao tomar conhecimento de que diversos Municípios deste Estado passaram a limitar o livre trânsito de pessoas e bens, com o fechamento de sua fronteira local, o Gabinete Gestor de Crise do MPSC elaborou Orientação que analisa os limites possíveis à defesa e proteção sanitária, documento anexo, que acaba de ser encaminhado para o Presidente da Federação Catarinense dos Municípios – FECAM e para os órgãos policiais na presente data, a fim de se assegurarem os direitos e garantias individuais de todos os cidadãos catarinenses.

Nesse contexto, apresenta-se o documento anexo a Vossas Excelências para que, na medida do possível, promovam sua ampla divulgação aos gestores municipais, envidando esforços para a efetiva ciência e orientação dos alcaides, nada obstando a adoção de medidas de natureza executiva em face daqueles atos que, eventualmente, excedam o poder de gestão municipal.

Seguimos à disposição dos colegas para apoio às medidas extrajudiciais ou judiciais que se fizerem necessárias no enfrentamento à pandemia da COVID 19.

Atenciosamente,

GT de apoio aos órgãos de execução ¿ Gabinete Gestor de Crise do MPSC

OFÍCIO N. 142/2020

Florianópolis, 18 de março de 2020.

A Sua Excelência o Senhor

SAULO SPEROTTO

Presidente da Federação Catarinense dos Municípios

Senhor Presidente,

Como sabido, o Estado de Santa Catarina se encontra em situação de emergência, declarada pelo Governador do Estado de Santa Catarina pelos Decretos n. 509 e 515, de 17 de março de 2020, circunstância que passou a impor, de forma extraordinária, porém legal, limitações as liberdades e garantias constitucionais dos cidadãos catarinenses.

Natural, nesse cenário, que atento as peculiaridades locais, os Prefeitos Municipais adotem medidas específicas de proteção à população local, a fim de evitar a propagação da pandemia. Todavia, a adoção de tais providencias não pode exceder os regramentos previstos para a defesa sanitária local, sendo inviável, por exemplo, a adoção de medidas drásticas, como a limitação de acesso territorial aos Municípios, circunstância incompatível com o exercício da autonomia municipal, por afetar serviços fornecidos pelo próprio Estado de Santa Catarina, de forma regionalizada (como, especialmente, o serviço de saúde).

Assim, ao tomar conhecimento de que diversos Municípios deste Estado passaram a limitar o livre trânsito de pessoas e bens, com o fechamento de sua fronteira local, o Gabinete Gestor de Crise, instalado no âmbito do Ministério Público de Santa Catarina para enfrentamento ao Coronavírus, elaborou Nota Técnica que analisa os limites possíveis à defesa e proteção sanitária, documento anexo, que foi encaminhado para todos os Membros do Ministério Público de Santa Catarina e para os órgãos policiais na presente data, a fim de se assegurar os direitos e garantias individuais de todos os cidadãos catarinenses.

Nesse contexto, para além das medidas de natureza executiva, que serão adotadas pelo Ministério Público em face daqueles atos que, eventualmente, excedam o poder de gestão municipal, apresenta-se o documento anexo a Vossa Excelência para que, na medida do possível, promova sua ampla divulgação aos gestores municipais, envidando esforços para a efetiva ciência e orientação dos alcaides.

Sendo o que tinha para o momento, aproveito a oportunidade para renovar votos de consideração e estima.

Atenciosamente,

 Feranando da Silva Comin

Procurador-Geral de Justça de Santa Catarina

FERNANDO DA SILVA COMIN

Procurador-Geral de Justiça

ORIENTAÇÃO DO GRUPO DE APOIO À EXECUÇÃO N. 1/2020

Ministério Público do Estado de Santa Catarina

Orientação do Grupo de Apoio à Execução n. 1/2020

COVID-19. DECRETO MUNICIPAL PREVENDO MEDIDAS RESTRITIVAS À CIRCULAÇÃO DE PESSOAS E VEÍCULOS: LIMITES E COMPETÊNCIAS. POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DE MEDIDAS NÃO FARMACOLÓGICAS DE DISTANCIAMENTO SOCIAL E RESTRIÇÃO DE CIRCULAÇÃO, DEVIDAMENTE MOTIVADAS, RESTRITAS AO RESPECTIVO TERRITÓRIO E COM PERTINÊNCIA À FINALIDADE DE CONTENÇÃO DA PROPAGAÇÃO DA CONTAMINAÇÃO, SUSTENTADAS EM EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS E EM ANÁLISES SOBRE AS INFORMAÇÕES ESTRATÉGICAS EM SAÚDE. IMPOSSIBILIDADE, PORÉM, DE FECHAMENTO DOS LIMITES TERRITORIAIS PELO MUNICÍPIO, RESTRIÇÃO GENÉRICA DE INGRESSO E CIRCULAÇÃO DE PESSOAS E DECRETAÇÃO DE “TOQUE DE RECOLHER”. POSSIBILIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DE BARREIRAS SANITÁRIAS NOS LIMITES TERRITORIAIS DO MUNICÍPIO.

  1. Base constitucional do direito de circulação

Como consequência do direito fundamental de locomoção (art. 5º, XV e LXVIII, da Constituição da República) e da proibição da distinção entre brasileiros (art. 12, § 2º, da Constituição da República), é garantido a todo residente no Brasil a livre circulação em território nacional.

As formas de exercício de tal direito, contudo, comportam algumas possibilidades de limitação, cujos elementos ¿ especialmente aqueles relacionados a estados de emergência de saúde pública ou calamidade pública ¿ serão abordados a seguir.

  1. Fundamento das restrições em geral

Contemporaneamente, sem qualquer prejuízo ao reconhecimento da superioridade normativa dos direitos fundamentais, não se concebe mais da existência de direitos absolutos, como se pode colhe da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF):

[…] 6. Na contemporaneidade, não se reconhece a presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais previstos no art. 5º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções Internacionais em matéria de direitos humanos. Os critérios e métodos da razoabilidade e da proporcionalidade se afiguram fundamentais neste contexto, de modo a não permitir que haja prevalência de determinado direito ou interesse sobre outro de igual ou maior estatura jurídico-valorativa. 7. Ordem denegada.[1]

Em que pese não estar em vigor estado de defesa ou de sítio, medidas de cunho administrativo se justificam como imperativo de saúde pública, na medida em que não suspendem direitos e garantias fundamentais, mas tão somente limitam temporariamente as formas de seu exercício.

Nessa linha, o Decreto n. 7.616, de 2011, que dispõe sobre a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e institui a Força Nacional do Sistema Único de Saúde disciplinou a natureza de várias medidas que tem como objeto a tutela da saúde pública, na esfera da União (art. 6º, caput, de 21, XVIII, da Constituição da República).

O expediente, destaque-se, já foi empregado pela União e por Estados em outras oportunidades, como no combate às epidemias de zyka e dengue ¿ cujas sabidas tristes consequências não se equiparam em gravidade e monta ao impacto da disseminação da Covid-19, declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no âmbito do sistema de saúde.

Frise-se que a prevalência do componente administrativo, na hipótese, não significa sobreposição ao processo legislativo (até mesmo porque existe lei autorizadora), mas pela necessidade de atualizar a avaliação, planejamento e execução de medidas diariamente, quando não por mais de uma vez dentro de um mesmo dia, dada a velocidade exponencial de propagação do vírus.

No quadro do combate à propagação da Covid-19, o regulamento do estado de emergência se encontra na Lei n. 13.979/2020 e em seus instrumentos disciplinadores: Portaria n. 356/2020/GM/MS e Portaria Interministerial n. 5/2020/MS/MJSP. São essas normas que ditam as medidas possíveis no âmbito da emergência em saúde pública e, mais importante, sua forma de implementação.

  1. Possibilidade da medida em si

Para fins da emergência de saúde pública atualmente declarada, entende-se por quarentena a restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus (art. 2º, II, da Lei n. 13.979/2020).

O art. 3º da Lei n. 13.979/2020 previu as medidas concretas que podem ser adotadas pelos entes federados:

Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas:

I – isolamento;

II – quarentena;

III – determinação de realização compulsória de:

  1. a) exames médicos;
  2. b) testes laboratoriais;
  3. c) coleta de amostras clínicas;
  4. d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
  5. e) tratamentos médicos específicos;

IV – estudo ou investigação epidemiológica;

V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;

VI – restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos;

VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e

VIII – autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que:

  1. a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e
  2. b) previstos em ato do Ministério da Saúde.

O § 1º do citado artigo, outrossim, fixa os requisitos para a adoção de qualquer das medidas ao estabelecer que ¿somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública¿.

Em complementação, a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, por meio do ofício circular n. 02/SEDEC, dentre outras orientações interpretativas da legislação em comento, previu que ¿a) Os estados e municípios só devem decretar situação de emergência baseado no desastre COBRADE 1.5.1.1.0, se houver casos confirmados da doença¿.

Também do corpo da Lei n. 13.979/2020, extrai-se que:

Art. 5º  Toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação imediata de:

I – possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus;

II – circulação em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo coronavírus. (sem grifo no original)

Ocorre que, nos termos do § 7º da Lei n. 13.979/2020, a medidas previstas nos incisos I, II, V, VI e VIII do caput do art. 3º somente podem ser adotadas pelos gestores locais de saúde se autorizados pelo Ministério da Saúde.

E tal autorização foi concedida por meio da Portaria MS/GM n. 356/2020, ao prever e delimitar a forma de definição das medidas sob regime de quarentena:

Art. 4º A medida de quarentena tem como objetivo garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado.

  • § 1º A medida de quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de comunicação.
  • § 2º A medida de quarentena será adotadapelo prazo de até 40 (quarenta) dias, podendo se estender pelo tempo necessário para reduzir a transmissão comunitáriae garantir a manutenção dos serviços de saúde no território.
  • § 3º A extensão do prazo da quarentena de que trata o § 2º dependerá de prévia avaliação do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCoV) previsto na Portaria nº 188/GM/MS, de 3 de fevereiro de 2020.
  • § 4º A medida de quarentena não poderá ser determinada ou mantida após o encerramento da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional.

Isso posto, tem-se que as medidas de restrição à circulação de pessoas são em tese possíveis, uma vez previstas em instrumentos normativos legítimos e considerando que não há ofensa abstrata ao texto constitucional, já que – a título de exemplo – o próprio art. 150, II, da Carta de 1988 prevê ressalva à vedação de uso de tributo como meio de limitação do tráfego de pessoas ou bens, o que deve ser entendido com ainda mais amplitude quanto à hipótese de proteção à saúde pública diante de pandemia.

  1. Exceções lógicas à restrição

Todas as medidas até aqui analisadas estão ancoradas na proteção constitucional conferida à saúde pública como critério para delimitar a finalidade de eventuais atos administrativos que importem limitações à forma de exercício de direitos individuais.

Justamente por isso, todo o ato que, quanto à sua finalidade, distancie-se de tal horizonte, é anulável.

Ainda nesse sentido, há certas balizas lógicas a serem observadas, vez que existentes ações que, por sua própria natureza, contrariam a preservação da saúde pública e a atuação adequada do sistema de saúde.

Daí que as medidas de restrição do tráfego de pessoas ou veículos, independentemente da autoridade que as determine, não poderão importar bloqueio da circulação de insumos essenciais, veículos de transporte de pacientes, transporte de água e gêneros alimentícios, pessoas não agrupadas que se dirijam a atividade privada ou pública considerada essencial, entrada e saída das cidades e atividades físicas individuais de curto período próximas à residência.

  1. Limites às competências dos Municípios

Ao tratar de algumas competências do Estado em seu território, dispõe a Constituição Catarinense: 

Art. 8º Ao Estado cabe exercer, em seu território, todas as competências que não lhe sejam vedadas pela Constituição Federal, especialmente:

[…]

VIII ¿ explorar diretamente ou mediante delegação os recursos hídricos de seu domínio, os serviços de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros e outros de sua competência conforme art. 137.

Art. 128: 

[…]

V – estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou de bens por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, excluída a cobrança de preço pela utilização de vias conservadas pelo Estado;

Ainda quanto à competência municipal, todas as atividades que extrapolam os limites territoriais do município são de caráter colaborativo, e não impositivo. É o que ocorre, por exemplo, com os convênios intermunicipais para prestação de serviços públicos de interesse de um conjunto de municípios, o que, no entanto, difere do impedimento do tráfego de pessoas.

O Município, portanto, não possui competência para estabelecer restrição genérica de acesso ao seu território, excetuada a implementação de barreira sanitária com amparo nos regramentos do regime de quarentena para enfrentamento à pandemia de Covid-19.

À parte a questão sobre se os Municípios são ou não ¿entes federados¿[2], fato é que algumas estruturas não possuem organização em âmbito municipal, como no caso dos Tribunais ou das Polícias Militares.

Desse modo, os Municípios não detêm competência para decretar restrições genéricas ou imprecisas de ingresso em seu território, tampouco para o fechamento de seus limites.

Veja-se que as medidas previstas na Lei n 13.979/2020 e na Portaria n. 356/2020 devem guardar pertinência com o resguardo da saúde pública, no caso específico da COVID-19, a propagação da doença quando entra em fase de transmissão comunitária. O simples fechamento de determinado território de município, com barricadas, barreiras policias, etc., impedindo a entrada de não residentes, não guarda pertinência com a finalidade de conter a circulação do vírus, em especial quando não apresenta sustentação em ¿evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde¿ (§ 1º do art. 3º da Lei n. 13.979/2020).

Isso porque, em havendo contaminação comunitária no território, pressuposto para adoção de qualquer medida de restrição de circulação em regime de quarentena pela autoridade sanitária municipal, a restrição de entrada e saída de pessoas não guardaria qualquer pertinência com a finalidade de conter a proliferação, podendo, lado outro, dificultar o atendimento de saúde de que poderia necessitar a população.

Contudo, está na alçada de competência da autoridade sanitária municipal o estabelecimento de barreiras sanitárias dentro de seus limites territoriais.

Na mesma linha, há competência da autoridade sanitária municipal, no limite das vias internas de circulação, a tomada de medidas que impliquem investigação ativa de eventuais estados de saúde que apontem para quadro suspeito de infecção Covid-19, como tomada de temperatura e averiguação de histórico de contato suspeito, efetuando o devido encaminhamento à rede de saúde, se for o caso, dentro dos protocolos estabelecidos para o acompanhamento da doença.

Outrossim, de conformidade com o art. 3º, caput, inc. II, da Lei n. 13.979/2020, c/c art. 4º da Portaria MS/GM n. 356/2020, em comprovada a ocorrência de transmissão comunitária no território, a autoridade sanitária local, desde que o faça motivadamente ¿com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde¿ (§ 1º do art. 3º da Lei n. 13.979/2020), poderá adotar medida de quarentena, restringindo a circulação de pessoas em seu território.

É preciso ressaltar que o ato administrativo que estabelecer as medidas referidas acima deve ser motivado em dados de evolução do quadro epidemiológico, cujo recebimento e sistematização se dá no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde, que demonstrem peculiaridade do território sanitário correspondente, e não poderá perdurar além do tempo necessário para a promoção e a preservação da saúde pública.

Em suma, toda e qualquer medida restritiva adotada pelo ente federado deve ser analisada à luz de sua motivação e pertinência com as justificas sanitárias que a embasaram.

  1. A questão dos ¿toques de recolher¿

Como reiteradamente dito, o regulamento do regime de quarentena (Lei n. 13.979/2020, Portaria n. 356/2020/GM/MS e Portaria Interministerial n. 5/MS/MJSP) é adstrito aos objetivos de saúde pública que almeja e suas medidas são vinculadas à finalidade de enfrentamento à infecção por Covid-19, devendo a tomada de decisão das autoridades competentes se basear em propósitos de natureza sanitária e epidemiológica.

A quarentena não se confunde, porém, com o chamado ¿toque de recolher¿, que consiste, segundo definição colhida do Dicionário Priberam da Língua Portugues, em ¿proibição, determinada como medida excepcional por governo ou autoridade, de os civis permanecer na rua a partir de determinada hora¿[3]. O toque de recolher é limitação genérica e abstrata, sem ¿base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde¿.

Nesse contexto, não há previsão abstrata de ¿toque de recolher¿ pelos referidos instrumentos, de modo que o ato administrativo que, em qualquer esfera, os decrete é ilegal quanto ao seu objeto.

Não há fundamento jurídico ou motivo científico que aponte para a necessidade de horários específicos (geralmente entre 22:00 ou 0:00 e 6:00) receberam restrições diversas das já existentes quanto à circulação de pessoas e veículos.

Ademais, é de se ressaltar que, se o objetivo declarado de eventuais medidas nesse sentido for o de garantia da segurança pública, o Município, além da ilicitude do objeto, estará usurpando competência executiva do Estado-membro (art. 144, caput e § 6º, da Constituição da República e art. 105 e ss. da Constituição do Estado de Santa Catarina).

Mudando o que deve ser mudado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se posicionou sobre situação semelhante, apontando justamente para a antijuridicidade do caráter genérico de tais medidas:

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PODER NORMATIVO DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. LIMITES. LEI 8.069/90, ART. 149.

  1. Ao contrário do regime estabelecido pelo revogado Código de Menores (Lei 6.697/79), que atribuía à autoridade judiciária competência para, mediante portaria ou provimento, editar normas “de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor” (art. 8º), atualmente é bem mais restrito esse domínio normativo. Nos termos do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), a autoridade judiciária pode disciplinar, por portaria, “a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhada dos pais ou responsável” nos locais e eventos discriminados no inciso I, devendo essas medidas “ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral” (§ 2º). É evidente, portanto, o propósito do legislador de, por um lado, enfatizar a responsabilidade dos pais de, no exercício do seu poder familiar, zelar pela guarda e proteção dos menores em suas atividades do dia a dia, e, por outro, preservar a competência do Poder Legislativo na edição de normas de conduta de caráter geral e abstrato.
  2. Recurso Especial provido.[4]

Não há, portanto, fundamento legal ou constitucional para a declaração de ¿toque de recolher¿ por Estados e Municípios no contexto das medidas de emergência de saúde pública.

  1. Sindicabilidade do ato administrativo

Em situações de emergência de saúde pública, o meio mais eficaz de evitar que os atos administrativos de tomada de medidas epidemiológicas e sanitárias está na rigorosa observância dos requisitos de competência, forma, objeto, motivo e finalidade (art. 2º, caput, `a¿ a `e¿, Lei n. 4.717/65).

Os atos administrativos que, por algum desses requisitos, destoarem das observações anteriormente formuladas, encontram-se sujeitos ao controle jurisdicional, detendo o Ministério Público legitimidade para recomendar sua revogação e pleitear judicialmente sua anulação, por meio de Ação Civil Pública.

  1. Conclusão

De todo o exposto, entende-se que:

  1. a) é juridicamente possível a adoção de medidas que limitem, com fundamento em objetivos concretos de proteção à saúde pública e ¿com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde¿ (§ 1º do art. 3º da Lei n. 13.979/2020), o direito de circulação no território;

a.1) os atos que prevejam tais medidas serão passíveis de anulação se não forem editados pela autoridade competente, de modo motivado, sem desvio de finalidade e por meio de ato formal;

a.2) os atos que prevejam tais medidas importarão restrição inconstitucional ao direito de circulação quando extrapolarem a limitação do direito de ir e vir, suspendendo-o, eis que a matéria depende de regulamentação constitucional.

  1. b) os Municípios não detêm competência para decretar restrições genéricas ou imprecisas de ingresso e circulação em seu território, tampouco para o fechamento de seus limites;

b.1) está na alçada de competência da autoridade sanitária municipal o estabelecimento de barreiras sanitárias dentro de seus limites territoriais;

b.2) está na alçada de competência da autoridade sanitária municipal, no limite das vias internas de circulação, a tomada de medidas que impliquem investigação ativa, de eventuais estados de saúde que apontem para quadro suspeito de infecção Covid-19, como tomada de temperatura e averiguação de histórico de contato suspeito, efetuando o devido encaminhamento à rede de saúde e aplicando medida de isolamento, se for o caso, dentro dos protocolos estabelecidos para o acompanhamento da doença;

b.3) o ato administrativo que estabelecer as medidas referidas nos itens b.1 e b.2 deve ser motivado em dados de evolução do quadro epidemiológico, cujo recebimento e sistematização se dá no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde, os quais demonstrem peculiaridade do território sanitário correspondente, e não poderá perdurar além do tempo necessário para a promoção e a preservação da saúde pública;

  1. c)os Municípios não detêm competência para decretação genérica de ¿toque de recolher¿, sendo certo que as restrições à circulação estabelecidas durante horários específicos ¿ período da madrugada, por exemplo ¿ devem ser as mesmas decretadas por necessidade sanitária;
  2. d)é facultado ao Estado ¿ seja por seustatus constitucional, seja pela posição que ocupa na gestão da média e alta complexidade no SUS ¿, mediante ato formal e motivado, o estabelecimento de restrições de circulação intermunicipal ou em regiões específicas, se a medida decorrer de evidente necessidade de contenção da transmissão comunitária e da organização do sistema público de saúde no atendimento aos infectados;
  3. e)as medidas de restrição do tráfego de pessoas ou veículos, independentemente da autoridade que as determine, não poderão importar bloqueio da circulação de insumos essenciais, veículos de transporte de pacientes, transporte de água e gêneros alimentícios, pessoas não agrupadas que se dirijam a atividade privada ou pública considerada essencial, deslocamentos para local de residência (incluía moradia eventual de temporada ou final de semana) e atividades físicas individuais de curto período próximas à residência;
  4. f)estão sujeitos ao controle judicial os atos administrativos que contrariem as conclusões aqui traçadas no que diz respeito ao objeto, competência, forma, motivo e finalidade;
  5. g)as medidas tomadas no âmbito dos Estados e Municípios não poderão, em nenhuma hipótese, ser prolongadas além do período de vigência da emergência de saúde pública ou além dos marcos temporais delimitados na Lei n. 13.979/2020.

Florianópolis, 20 de março de 2020.

GT de Apoio aos Órgãos de Execução

Alexandre Estefani

Subprocurador-Geral de Justiça para Assuntos Institucionais

Fábio de Souza Trajano

Subprocurador-Geral de Justiça para Assuntos Jurídicos

Davi do Espírito Santo

Coordenador CECCON

Douglas Roberto Martins

Coordenador CDH

Fabrício Weiblen

Coordenador CMA

Luciano T. Naschenweg

33ª Promotoria de Justiça da Capital – Saúde

João Luiz de Carvalho Botega

Coordenador CIJ

Jádel da Silva Júnior

Coordenador CCR

Marcelo Britto Araújo

25ª Promotoria de Justiça da Capital – Educação

Eduardo Paladino

Coordenador CCO

Analú Librelato Longo

29ª Promotoria de Justiça da Capital ¿ Consumidor

Marina Modesto Rebelo

Coordenadora Estadual GEAC

Daniel Paladino

30ª Promotoria de Justiça da Capital ¿ Cidadania

Júlia Wendhausen Cavallazzi

Coordenadora GESPRO

 

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 93250, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 10/06/2008, DJe-117 DIVULG 26-06-2008 PUBLIC 27-06-2008 EMENT VOL-02325-04 PP-00644

[2] ¿Não é porque uma entidade territorial tenha autonomia político-constitucional que necessariamente integre o conceito de entidade federativa. Nem o Município é essencial ao conceito de federação brasileira. Não existe federação de Municípios. Existe federação de Estados. Em que muda a federação brasileira com incluir os Municípios como um de seus componentes? Não muda nada¿. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 447.

[3] Disponível em: https://dicionario.priberam.org/toque%20de%20recolher. Acessado em 20.3.2020.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1292143/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/06/2012, DJe 07/08/2012

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