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“Com a PEC 37, assim como acontece em Uganda, Quênia e Indonésia, pretende-se retirar, sobretudo, do MP a possibilidade de investigar criminalmente”

Quantos atentados a frágil e recente democracia brasileira poderá suportar? – Alessandra Garcia Marques*

A indagação deve estar na ordem do dia, e, neste momento, é indispensável falarmos aos quatro cantos do mundo sobre a PEC 37, tratarmos de nossas mazelas atentatórias à democracia e apurarmos a capacidade de resistência do Estado Democrático de Direito brasileiro aos mais vis ataques, neste país em que a corrupção singrou o Atlântico há mais de quinhentos anos, a bordo de caravelas conduzidas por destemidos portugueses, que almejavam simplesmente encontrar riquezas que pudessem ser por eles dilapidadas, subtraídas mesmo, para sustentar uma Corte combalida e corrupta no velho mundo, a Corte Portuguesa.

 
Podemos dizer, tal como hoje é pacificamente reconhecido pela historiografia, que o que houve aqui nunca se tratou de descoberta do Brasil, pois o que realmente ocorreu abaixo da linha do Equador, no ocidente, foi a tomada de assalto pelos europeus desse admirável mundo novo, novo apenas aos olhos portugueses e espanhóis.
 
É, aliás, evidente o fato de que a Corte de Portugal nunca pretendeu estabelecer uma política desenvolvimentista nas terras dominadas, pois almejava apenas explorar nossas riquezas naturais. Ademais, a chegada da Corte no Brasil, com todas as suas mazelas e vícios, fundou a corrupção, e estabeleceu as bases para o que viria a ser futuramente consolidado como o jeitinho brasileiro e comezinho “você sabe com quem está falando”, práticas essas das quais nunca conseguimos nos libertar. A confusão entre a coisa pública e a coisa privada no Brasil nasceu com a chegada da família real portuguesa, a família voltou em grande parte para a metrópole, perdeu o poder, mas essa confusão nunca mais foi embora.
 
O tempo passou, o Brasil tornou-se, por força da vontade da elite que aqui vivia, politicamente independente de Portugal, pois economicamente dependia profundamente da Europa, inclusive da Inglaterra, e, no final do século XIX, tornamo-nos uma república sem que também houvesse participação popular, de forma que a independência política e a passagem do estado monárquico para o estado republicano foram, praticamente, no Brasil, fruto da conspiração de uma elite atrasada e afeta à corrupção e ao favorecimento pessoal, que sempre cultivou enorme dificuldade em compreender o verdadeiro sentido da participação popular e da ética, num Estado frágil e pouco soberano.
 
Vê-se, dessa feita, que a instauração da república brasileira foi propriamente um golpe militar, e que o país nunca conseguiu se livrar da ameaça de novos golpes. E, nesse compasso, tivemos com mais evidência a ditadura de Vargas e o golpe militar de 1964, que deixaram a nossa fragilidade política e institucional escancarada ao mundo.
Com o fim do governo militar, tivemos o momento mais importante da política brasileira, a formação da assembleia constituinte e a promulgação da Constituição da República de 1988.A partir de então, ficou expressamente firmado que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. E, de lá para cá, quanta dificuldade para se compreender o verdadeiro significado disso!
 
Sem a mínima pretensão de esgotar todas as facetas do Estado Democrático brasileiro, uma coisa é certa, é incompatível com esse modelo de Estado o cerceamento da investigação por parte dos órgãos estatais de controle, a restrição da investigação simplesmente às polícias e a não transparência na divulgação à sociedade dos resultados das investigações.
 
Investigar é fundamental, para que se possa preservar os bens jurídicos mais caros, que foram assim eleitos pela própria Constituição da República. Em que pese o fortalecimento dos diversos órgãos de controle ocorrido com a Constituição de 88, a prática arraigada da corrupção não cedeu, mesmo com a sociedade um pouco mais atenta, sobretudo pela globalização e seus efeitos, além do maior acesso à informação advindo da popularização da internet e do funcionamento cada vez maior desses órgãos estatais de controle, pois na guerra contra corrupção e a confusão entre o público e o privado essas duas práticas ainda não restaram vencidas, embora venham sofrendo duras derrotas decorrentes do esforço dos diversos órgãos de controle.
 
Nessa senda, como na Constituição de 1988 foi conferida ao Ministério Público a titularidade privativa da ação penal, é preciso ficar claro que não há qualquer razoabilidade em subtrair dessa instituição indispensável à sociedade e à preservação do Estado Democrático de Direito a possibilidade de investigar criminalmente, sobretudo, porque todos os elementos de informação colhidos na investigação, seja lá por quem quer que tenha sido realizada, investigação essa que não se restringe à atividade policial, têm como destinatário o próprio Ministério Público.
 
A investigação criminal, não podemos esquecer, serve ao Ministério Público, para que possa formar sua opinião acerca do fato investigado, oportunidade em que deverá adotar as providências devidamente previstas em lei.
 
Em verdade, toda a investigação criminal, feita por quem quer seja, é dirigida ao titular da ação penal, o Ministério Público. E aqui é imprescindível deixar bem claro que investigação criminal é gênero do qual investigação policial é apenas uma das espécies, sendo que o Ministério Público, titular que é da ação penal, sequer necessita de procedimento investigatório prévio, para que venha a ajuizar a ação penal.
 
Ao contrário disso, a PEC 37 pretende inserir um parágrafo 10 ao art. 144 da Constituição da República, para estabelecer que a investigação criminal deverá ser atividade privativa das polícias federal e civil, tal como a ação penal é privativa do Ministério Público, com as ressalvas de que, no derradeiro caso, ainda coexistem com a ação penal pública incondicionada a ação penal privada, a ação penal pública condicionada à representação ou à requisição e, ainda, a ação penal privada subsidiária da pública, essa derradeira para o caso de inércia do Ministério Público, instituição, ademais, sujeita a eficiente sistema de controles interno e externo, o que inocorre com as polícias.
 
Com a PEC 37, assim como acontece em Uganda, Quênia e Indonésia, pretende-se retirar, sobretudo, do Ministério Público a possibilidade de investigar criminalmente e fazer com que toda a investigação realizada pelos órgãos de controle seja incapaz de, por si só, instruir a ação penal sem que antes passe o apurado pelas polícias civil ou federal.
 
O que podemos pensar disso? Podemos pensar que a famigerada PEC 37, enquanto escancarado golpe à democracia, é um projeto das próprias polícias federal e civil, o que é um absurdo e seria aparentemente contraditório se não fosse antes, além de uma verdade, uma enorme vergonha para essas polícias e desmascara seus interesses arcaicos e nada republicanos em não ver descobertos e punidos os crimes mais graves que assolam o país, inclusive, os crimes cometidos por policiais. Podemos, também, pensar, a título de reforço, que a PEC 37 é de autoria do deputado Lourival Mendes (PTdoB do MA) e que conta com grande apoio do deputado mineiro envolvido na máfia do carvão, Bernardo Santana (PR-MG), que foi, inclusive, fortemente investigado pelo Ministério Público de Minas Gerais.
 
Podemos, também, lembrar, nesse caminho, como reforço argumentativo, que, com a PEC 37, pretende-se que as investigações levadas a efeito pelas CPI´s, COAF, Receita Federal, Banco Central e outros órgãos de controle deverão ser remetidas às polícias, para que depois de concluído o inquérito policial seja esse procedimento administrativo remetido ao Ministério Público, que, então, proporá a ação penal.
 
Por isso tudo devemos nos questionar se estamos certos de que é disso que o Brasil, um dos países mais corruptos do mundo e onde a impunidade é facilitada pela lei, precisa. Em nome da junção de interesses de políticos escusos e do interesse vil, atrasado e corporativo das polícias bastante combalidas pela corrupção e que não detém as mesmas garantias e prerrogativas que os membros do Ministério Público – inamovibilidade, vitaliciedade, dentre outras, sem se olvidar da independência funcional que é princípio institucional do Parquet – poderá a Constituição da República ser modificada para, inconstitucionalmente, tornar a atividade investigativa criminal privativa dessas polícias?
 
Imaginemos que investigações como a do médico Roger Abdelmassih, do prefeito Celso Daniel, do juiz Nicolau dos Santos Neto e do ex-senador Luiz Estevão, de Salvatore Cacciola, dentre inúmeras outras, foram efetivadas pelo Ministério Público brasileiro, e que a PEC 37 pretende impedir outras de mesmo porte bem como todas as demais que, sem versar sobre infrações penais de mesmo potencial ofensivo, ocorrem cotidianamente em todos os rincões deste enorme país e são conduzidas por Procuradores da República e Promotores de Justiça.
 
A PEC 37 significa que esse modelo em que a investigação pode ser realizada por diversos órgãos de controle não é bom, é inservível, e se prende ao fato de que o Ministério Público pretende tomar o lugar das polícias, o que é uma premissa absolutamente falsa, pois o que se quer e está devidamente conformado pelo modelo constitucional é que a investigação seja realizada por todos os órgãos de controle do Estado, e que a sociedade possa requerer e cobrar a efetiva ocorrência da investigação, tendo, ademais, conhecimento de seu resultado. Isso sim é democracia. Ao contrário disso, a PEC 37 está completamente despida de legitimidade social e, também, eivada pelo vício da inconstitucionalidade material.
 
É, outrossim, necessário desmascarar, com vigor, essa falsa premissa de que pretende o Ministério Público ocupar o lugar das polícias, usurpar sua função investigatória também relevante ao Estado Democrático de Direito, pois isso nunca foi o que se quis, sendo que o que não se pode admitir em nosso modelo constitucional é que as polícias civil e federal sejam as únicas que possam investigar infrações penais no Brasil, sob pena de jamais conseguirmos superar a triste constatação de que somos um país no qual sempre proliferará a impunidade, onde, também, sempre imperarão a obscuridade e a corrupção.  
 
A pergunta que fica e o assunto que não pode ser calado, portanto, é: quantos ataques sórdidos realizados por aqueles que representam o atraso, o corporativismo e desejo de que sempre prevaleça a impunidade a democracia brasileira suportará antes de sucumbir e sem sequer ter chegado à sua plenitude?
 
Do modo como a sociedade brasileira responderá a essa indagação depende o futuro de nosso sonho de democracia nos trópicos.
 
 *Alessandra Garcia Marques – Promotora de Justiça de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Estado do Acre

Fonte:

Texto- MPAC

Foto – MPAC

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